Disciplina: Teologia do Antigo Testamento
Prof. Dr. Nelson Kilpp
Quinto tema:
Os poderes demoníacos no Antigo Testamento
Pretende-se abordar brevemente os diversos poderes e entidades que, no Antigo Testamento,
personificaram o mal e continuam, de uma forma ou outra, sendo considerados forças maléficas
capazes de prejudicar as nossas vidas. O plural - “poderes demoníacos”- é importante, pois
evidencia que, no Antigo Testamento, ainda não se pode falar de uma única personificação do Mal,
a que no decorrer da história da Igreja cristã recebe o nome de Diabo. Também o Diabo ou Satanás
deve ser visto e entendido como uma entre muitas figuras às quais se atribuíam poderes destrutivos
que ultrapassavam a compreensão humana.
1. Os demônios: um fenômeno universal
Poderes demoníacos se encontram em todas as expressões religiosas de todas as épocas e lugares.
Para melhor ambientar as afirmações do Antigo Testamento sobre os poderes demoníacos dentro de
um contexto mais amplo, iniciamos com as tentativas das Ciências da Religião de entender, definir
e classificar este fenômeno. (1)
Já que não existe, na língua hebraica, nenhum termo genérico para designar um poder demoníaco e
uma vez que o termo “demônio” é de origem grega, parece conveniente iniciar a análise com o que
os antigos gregos, que cunharam o termo, entendiam pelo mesmo. Apesar de etimologicamente
incerto, o termo representava na antiga Grécia, desde Homero, uma divindade inferior ou, então, um
ser intermediário entre os deuses e os humanos, capaz de influenciar o cosmos ou a vida humana.
Esta influência podia ser, a princípio, tanto negativa quanto positiva. Sócrates, p.ex., acreditava que
um demônio era um espírito protetor bom. Mas já discípulos de Platão entendiam que os demônios
eram unicamente maus, pois não se queria atribuir atos de maldade às divindades oficiais. A partir
daí o aspecto negativo se torna predominante. Para a Septuaginta (versão grega do Antigo
Testamento) e o Novo Testamento o termo “demônio” designa exclusivamente um poder ou espírito
maligno. Também na atualidade os demônios são entendidos como seres supra-humanos ou infradivinos
capazes de ameaçar e prejudicar as pessoas. Assim, calamidades naturais, doenças,
deficiências físicas e mentais, acontecimentos inexplicáveis ou, então, a morte podem ser
explicadas como conseqüência de atuação demoníaca.
A crença em demônios - bem como a crença em anjos - é muito difundida tanto na Grécia antiga
quanto no Antigo Oriente Médio, tanto no antigo judaísmo e no Novo Testamento quanto na Idade
Média. Mas não só. Em todos os continentes, em religiões consideradas “primitivas”, mas também
na religiosidade moderna e pós-moderna, a crença em anjos e demônios está em alta. Demônios
fazem parte da vida assim como o fazem a desgraça, a doença e a morte.
Uma análise comparativa das religiões constata que os demônios podem ser classificados de acordo
com o mal que causam. Os demônios da sexualidade, por exemplo, ameaçam as pessoas com a
impureza sexual ou, na noite de núpcias, até com a morte. Insanidade, lepra, cegueira, mudez ou
surdez podem ser atribuídas, cada qual, a um demônio ou espírito maligno específico. Calamidades
naturais podem advir de demônios da natureza. Em muitos casos também a apostasia ou a falsa
doutrina é considerada de origem demoníaca ou “tentação” do demônio. Isso evidentemente se
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 2
relaciona com o fato de que, muitas vezes, os deuses de outros povos são equiparados a demônios,
pois que seduzem à idolatria. Em certos casos, também espíritos de pessoas mortas são
considerados demônios por causa de seu poder maligno. Em alguns casos até o desemprego ou a
falte de dinheiro podem ser atribuídos a forças demoníacas.
Os demônios também podem ser classificados de acordo com a sua morada preferida. Locais
assombrados por excelência são os lugares ermos, como ruínas, cemitérios, desertos, cavernas, bem
como matos ou montes. Muitos demônios fazem uso de elementos ou fenômenos da natureza para
manifestar-se, como, p.ex., tempestade, enchentes, granizo, estiagem ou fogo. Outros preferem a
escuridão da noite; a hora após a meia-noite é a sua hora preferida. Menos freqüente é a hora do
meio-dia, a hora da insolação (Sl 91,5s.).
Pelo seu aspecto físico, os demônios se destacam por serem extremamente feios, mesmo quando se
os imagina parecidos com os humanos. Com freqüência assumem a forma de animais, tais como
bodes, leões, lobos, cães, aves, serpentes (dragões), sapos ou insetos. São animais horripilentos ou
peçonhentos, animais de rapina, que se caracterizam por sua voracidade ou capacidade de causar
dano. Às vezes, os demônios são representados como seres mistos, metade animal e metade pessoa.
Isso talvez aponte para a ambigüidade destes demônios: eles são, ao mesmo tempo, monstruosos,
mas também imperfeitos e, portanto, vulneráveis.
Ao contrário das divindades oficiais, tidas por sábias, poderosas e basicamente imbatíveis, os
demônios podem ser vencidos ou, então, mantidos à distância por meio de astúcia, feitiços,
encantamentos, palavras ou ritos mágicos. O xamã ou o exorcista pode recorrer a gritos, palavras
mágicas fortes (às vezes em língua estrangeira) ou imposição de mãos para afastar os maus
espíritos. Para manter um demônio telúrico à distância, joga-se lama, areia, sal ou cinza na cabeça
ou no corpo da pessoa possuída ou ameaçada. Muitas vezes, se alcança o mesmo resultadi
carregando talismãs ou amuletos (está a qui a origem das “jóias”). Para afastar demônios da
sexualidade, por outro lado, recorre-se a banhos e lavagens rituais, que purificam as pessoas,
tornando-as aptas para o culto. Em determinadas, circunstâncias, também vinho, sangue, azeite ou
saliva têm efeito purificador e são capazes de expulsar demônios.
2. Os demônios no Antigo Testamento
Já foi dito acima que, no Antigo Testamento, não se conhece um termo específico para designar um
demônio. Pelo contrário, há vários termos e nomes que assinalam poderes demoníacos. Ainda não
existe a figura clássica do Diabo, a personificação por excelência do mal. Antes de analisar estes
termos e nomes, no entanto, cabe uma outra constatação. No Antigo Testamento , Israel tem a
tendência de incorporar os seres demoníacos em sua fé, atribuindo as características demoníacas a
seu Deus, Javé.
2.1. Os traços demoníacos de Deus
No Antigo Testamento, o Deus de Israel exige ser adorado como Deus único. Esta exclusividade do
Deus bíblico é responsável pela falta de um dualismo radical entre o bem e o mal e também pela
inexistência de uma demonologia no Antigo Testamento. Sendo Javé único, ele se apresenta como
um Deus ambivalente: ele causa o bem, mas também está na origem do mal. Jó confessa: “Se
aceitamos de Deus os bens, não deveríamos também aceitar os males?” (Jó 2,10). O próprio Moisés
tem que ouvir da boca de Javé: “E quem é que dá a boca ao homem? Ou quem faz o surdo e o
mudo, o que vê e o cego?” (Ex 4,11). Isso talvez escandalize alguns leitores. Como Deus pode
causar os males e as deficiências? Mas esta é apenas a conseqüência lógica da monolatria. Se há
somente um único Deus, dele há de provir tanto o bem quanto o mal.
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 3
Encontramos, no Antigo Testamento, diversos textos em que transparece essa tendência. Ao adotar
antigas tradições, geralmente pré-israelitas, a teologia oficial suprime os demônios das mesmas,
transferindo os traços demoníacos a Javé. Mas nem sempre se conseguiu apagar completamente os
vestígios de demônios, que comprovam a existência de uma crença em demônios não somente em
povos vizinhos, mas também entre os próprios israelitas. Tomemos por exemplo os textos de Gn
32,23-33; Ex 4,24-26 e Ex 12.
a) Gn 32,23-33 contém um conto popular em que Jacó luta com Deus no passo do rio
Jaboc/Jaboque, na Transjordânia. O texto narra que, após ter passado a sua família e os seus bens,
Jacó permaneceu só à margem do Jaboc. Ao cair a noite, Jacó é atacado por um “homem”, com o
qual se debate até o romper da aurora. Ao anunciar-se a luz do dia, o “homem” aparentemente
desiste do combate e pede para ser solto, o que ocorre após Jacó receber a bênção solicitada, mas
não a resposta à pergunta pela identidade do atacante. Apesar de o “homem” que lutara com Jacó
ser identificado, no final do texto, com o Deus de Israel, é inquestionável que Israel adotou aqui
uma antiga tradição de um espírito maligno do rio Jaboc, que, à noite, assaltava os passantes
incautos e que perdia suas forças com o nascer do dia. Ao recontar a história, Israel não só mostra
que seu antepassado Jacó foi mais forte ou esperto que o demônio do rio, mas também que este
demônio perde sua identidade e autonomia. Quem lutou com Jacó foi ninguém menos do que o
próprio Deus de Israel. Com isso, Javé assume as características do espírito fluvial, inclusive suas
imperfeições e limitações a espaço e tempo. A partir desta identificação explicam-se as três
etiologias do texto: Israel (“Deus peleja”) é interpretado por “lutaste com Deus”; o nome da
localidade, Peniel/Fanuel, é explicado a partir do fato de Jacó, no combate, “ter visto a face de
Deus”; e o ferimento na coxa de Jacó entende-se que tenha sido causado por Deus, razão pela qual
se proíbe, em Israel, comer o nervo ciático.
b) Num dos textos mais misteriosos do Antigo Testamento, Ex 4,24-26, Javé ataca Moisés e tenta
matá-lo quando este pára, juntamente com sua mulher e filho, pára numa pousada, certamente para
passar a noite. O texto narra que, durante o estranho combate, Séfora/Zípora, a mulher de Moisés,
salva seu marido circuncidando seu filho e jogando o prepúcio recém-cortado e ainda sangrento
sobre a virilha de Moisés. A história deve ser muito antiga, pois a circuncisão é feita com uma pedra
e, pela primeira e única vez no Antigo Testamento, ela é realizada por uma mulher. Não se sabe por
que motivo Javé quer matar o recém vocacionado Moisés. Parece um contra-senso. Explicações
psicológicas procuram uma eventual culpa de Moisés que pudesse explicar o ataque de Deus. Em
outra oportunidade (2) aventei a hipótese de que Javé, o Deus midianita, teria atacado Moisés, o
não-midianita, por ter invadido território restrito a este povo. Por ser midianita, Séfora não é
atacada; além disso, ela sabe como lidar com este Javé, já que o conhece. Neste caso, o Deus Javé
dos midianitas teria tido originalmente as características e também limitações de um demônio do
deserto. O sangue do prepúcio jogado em Moisés consegue afastar Javé e fazê-lo desistir de seu
intento.
Outra possibilidade de se entender o texto é considerar que a tradição original ainda não tratava de
Javé, mas um demônio do deserto que, à noite, atacava as pessoas que paravam na pousada situada
em seu território. Neste caso, ao incorporar a tradição pré-israelita em sua própria história com seu
Deus, Israel substitui o desconhecido demônio por Javé, atribuindo, assim, a Javé as peculiaridades
do mesmo.
c) O terceiro exemplo mostra claramente como Javé atrai a si tradições originalmente vinculadas a
poderes maléficos ou demoníacos. Trata-se da história da origem da Páscoa, Ex 12, em especial os
v. 21-23. Dentro do contexto da última praga que se abate sobre o Egito e que resulta na morte dos
primogênitos egípcios, se insere a celebração da Páscoa israelita. Moisés ordena que as famílias
israelitas matem o cordeiro da Páscoa e, com o sangue dos cordeiros, untem as molduras das portas
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 4
de suas casas. Pois quando Javé vier para matar as crianças egípcias e vir as portas untadas de
sangue, “saltará vossas portas, e não deixará o Exterminador penetrar em vossas casas para ferir”.
(Ex 12,23)
O texto ainda deixa entrever que, na origem, a história não falava de Javé, mas de um Exterminador
(mashhit) que aparentemente representava uma ameaça para os primogênitos e que podia ser
mantido à distância através da realização de um determinado ritual de sangue. Geralmente se afirma
que este ritual de sangue provém do contexto de antigos grupos de pastores semi-nômades que, no
início da primavera, talvez em noite de lua cheia antes de partirem com seus rebanhos para (ou
chegarem com seus rebanhos em) uma nova pastagem, ofereciam sacrifícios animais e realizavam
um ritual de sangue para protegerem a si mesmos e aos seus rebanhos do ataque de um demônio
“exterminador”.
No atual contexto da história da salvação do povo de Israel, em Ex 12, todas as características deste
espírito destruidor são assumidas por Javé. Surge, assim, de um lado, um problema teológico: Deus
pode ser tão cruel a ponto de exigir o sacrifício de crianças? Por outro lado, pode-se afirmar que o
poder do demônio destruidor não mais precisa amedrontar o povo, já que Javé é mais forte do que
todo e qualquer poder demoníaco e é ele que liberta da opressão.
Os exemplos acima mostram como Israel procurou, no decorrer de sua história, integrar em sua fé
tradições que preservavam experiências com poderes demoníacos. Esta integração certamente foi
possível porque as experiências preservadas nos textos analisados acima estavam relacionadas com
grupos populacionais ou tribos que posteriormente fizeram parte da grandeza político-religiosa
chamada Israel. Ao tornar-se parte de Israel, cada um destes grupos proto-israelitas trouxe consigo
suas tradições e com elas contribuiu para a rica história de salvação do povo de Israel. Esta
integração fez com que, aos poucos, o Deus único da teologia oficial se sobrepusesse aos poderes
demoníacos que ameaçavam a vida do povo. Certamente estar nas mãos de Javé era menos
ameaçador do que estar à mercê de poderes demoníacos.
2.2. Termos designativos de demônios no Antigo Testamento (3)
Vimos que nem sempre a fé exclusiva em Javé exigida pela religião oficial conseguiu apagar todos
os vestígios de demônios e espíritos maus que marcavam a religiosidade dos povos vizinhos e
certamente também de grande parte da população israelita. No Antigo Testamento encontramos
diversas designações que parecem representar poderes demoníacos específicos. Falaremos, a seguir,
primeiramente de termos coletivos e genéricos e, em segundo lugar, de alguns termos que podem
ser entendidos como nomes próprios de demônios ou espíritos malignos específicos. A
nomenclatura é bastante ampla e compreensiva, mas certamente incompleta.
2.2.1. Designações genéricas e coletivas
Dentre os termos genéricos usados para designar grupos de demônios, os mais freqüentes são os
seguintes:
Os tsiyyim (Is 13,21; 34,14; Jr 50,30; Sl 72,9) podem designar tanto os habitantes como os animais
ou demônios do deserto (tsiyyah = “aridez”). Confundem-se aqui demônios do deserto com
animais que habitam lugares abandonados e desertos, como hienas, chacais, corujas, avestruzes,
cobras e linces. Ambos, demônios e animais, podem ser mencionados lado a lado. Muitas vezes
não mais se sabe se se fala de meros animais ameaçadores com significado simbólico ou de
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 5
demônios com traços animalescos. O mesmo vale para o termo paralelo `iyyim (“hienas”) e os
tannim (“chacais”).
Animais feios e ferozes ganham significado simbólico também na literatura apocalíptica. Os quatro
animais que, conforme Dn 7, saem do mar, um após outro, são cada vez mais ferozes, feios e
ameaçadores e representam o aspecto cada vez mais demoníaco dos impérios opressores e
“devoradores”. O quarto animal é tão espantoso e terrível que não mais há como compará-lo a um
animal real.
Os se’irim , originalmente “bodes” (da raiz semita sa’ir, “peludo”) foram entendidos como sendo
seres demoníacos em alguns textos (Lv 17,7; 2 Rs 23,8; Is 13,21; 34,14; 2 Cr 11,15). Provavelmente
eram demônios do deserto com a forma e as características de um bode, ou seja, eram peludos,
agressivos e fedorentos. Podem ser comparados aos sátiros gregos, representados com orelhas
grandes e pontiagudas, patas e rabo de bode. A figura do bode lembra também a divindade romana
Pã (metade bode, metade pessoa), que vai dar a matriz para muitas representações populares do
Diabo na Idade Média, conhecidas até hoje. Em alguns textos, fala-se explicitamente de um culto a
estes se’irim (Lv 17,7; 2 Cr 11,15), mas em outras passagens não mais se pode decidir se se trata de
seres demoníacos ou simplesmente de animais, ou seja, cabritos do deserto (Is 13,21; 34,14)
Os shedim (Dt 32,17; Sl 106,37) devem estar relacionados com o termo acádico shedu(m), que pode
designar um demônio maligno ou um espírito protetor benigno (neste último sentido somente no
singular). Enquanto que, no acádico, encontramos quase que somente a forma no singular, o Antigo
Testamento conhece somente o plural. As duas únicas referências no Antigo Testamento
mencionam sacrifícios aos shedim. Em Dt 32,17, os shedim se encontram em paralelo a “deuses
novos, desconhecidos”, no contexto da crítica à idolatria, aparentando ser uma designação genérica
para divindades estrangeiras. Em Sl 106,37, também no contexto da idolatria, afirma-se que
crianças eram sacrificadas aos shedim. Neste caso, estes são comparáveis à divindade Moloc, ao
qual se ofereciam crianças em sacrifício, em especial no vale de Hinom, em Jerusalém (cf. 2 Rs
16,3; 21,6). No Antigo Testamento, o termo não se refere mais a um poder demoníaco, mas designa
bem genericamente divindades estrangeiras, que constituem uma tentação para Israel e cuja
adoração é proibida.
Neste contexto, cabe mencionar os elilim (Sl 96,5; Bar 4,7), “ídolos”, que, na verdade, também não
representam um poder demoníaco. Muitas vezes, no entanto, as divindades de outros povos são
menosprezadas e consideradas meros ídolos ou demônios com autoridade reduzida. Ídolos, no
entanto, bem como divindades estrangeiras não podem ser confundidas com poderes demoníacos.
Isso vale também para Beel-Zebul (veja abaixo). Tanto no Antigo Testamento quanto na história da
Igreja cristã, houve sempre tentativas de demonizar as divindades e crenças de outras nações e,
assim, identificar idolatria ou apostasia com adoração a demônios.
Apesar de não serem designativos de grupos, cabe intercalar aqui três termos que se encontram no
singular, mas têm caráter genérico, ou seja, não (mais) são nomes próprios. Trata-se de reshef,
qeteb e deber.
Reshef geralmente se traduz por “febre, epidemia, pestilência” (Dt 32,24; Hc 3,5: Sl 78,48: talvez
também Jó 5,7 e Ct 8,6). Na origem, Reshef era uma conhecida divindade, adorada em todo o
Antigo Oriente e vinculada ao mundo dos mortos, à peste e à guerra (equiparável ao deus
babilônico Nergal). Devido às características deste deus, o reshef se transforma, no Antigo
Testamento, num espírito demoníaco que acompanha Javé quando este se revela, trazendo doença,
morte e destruição. Geralmente o termo reshef vem acompanhado de qeteb (Dt 32,24: “epidemia”) e
deber (Hc 3,5: “peste”). No AT, a antiga divindade está em vias de desaparecer por trás de
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 6
fenômenos naturais como as “chamas de fogo” de uma paixão (Ct 8,6), os “relâmpagos (flechas) do
arco” (Sl 76,4) ou, então, simplesmente a “febre” (Hc 3,5).
Presume-se que também o termo hebraico qeteb ( Dt 32,24; Is 28,2; Os 13,14; Sl 91,6) designe, na
origem, um demônio (relacionado à deusa síria Qatiba) que provoca doença, destruição e morte.
Mas não há certeza de que o AT ainda preserve esta concepção. A certeza ainda é menor no tocante
ao termo deber (Os 13,14; Hc 3,5). Mesmo que se suponha a existência de um demônio do mundo
dos mortos que espalha doença, peste e morte, o AT não mais deixa transparecer esta visão.
Geralmente o termo designa a peste bubônica (p.ex., Ex 5,3; Lv 26,25).
O termo refaim pode designar uma nação de gigantes ou, então, os espíritos de mortos (Jó 26,5; Is
26,14.19). Muitas vezes o termo é traduzido por “sombras”. Apesar de os mortos serem
considerados espíritos malignos em muitas culturas, não há indícios de que em Israel tenha sido
assim. A narrativa de 1 Sm 28, conforme a qual Saul consulta uma necromante para entrar em
contato com o falecido Samuel, se encontra totalmente isolada no Antigo Testamento. Mesmo em 1
Sm 28, o falecido Samuel não é apresentado como um espírito maléfico.
2.2.2. Nomes próprios de demônios
Há diversos termos que aparentemente designam demônios individuais. Entre eles se destacam os
seguintes:
A Lilith aparece uma única vez no Antigo Testamento (Is 34,14), mas é mencionada diversas vezes
na literatura judaica posterior (no Talmud e na literatura cabalística, midráshica e folclórica).
Tradicionalmente se vincula o nome Lilith ao termo hebraico layl, “noite”; ela seria então um
demônio da noite. Mas provavelmente o termo deve ser identificado com o acádico lilitu (feminino
de lilu), que designa uma espécie de deusa menor, conhecida na Mesopotâmea por atacar mulheres
em trabalho de parto (à semelhança da divindade Lamashtu). Na tradição judaica, Lilith
aparentemente ameaçava devorar bebês recém-nascidos, de modo que as mães se protegiam através
de encantamentos e amuletos (cf. a tradução da Vulgata, em Is 34,14: lamia). O Antigo Testamento
nada disso menciona. O texto bíblico a coloca como habitante de lugares desolados e inóspitos, na
companhia de animais assustadores e outros seres demoníacos.
O Talmud representa Lilith como uma mulher demoníaca, com cabelos longos e asas, que pode
atacar homens que dormem sozinhos. Desenhos provenientes da comunidade judaica da
Mesopotâmea (séc. I d.C.) representam Lilith nua, de cabelos soltos e acorrentada, o que reforça o
aspecto sexual de Lilith. A literatura cabalística e midráshica desenvolve estas tradições criando
lendas por vezes fantásticas a respeito de Lilith.
O significado do termo `Azazel (Lv 16,8.10.26) não é totalmente certo, mas é muito provável que
se tratava de um demônio do deserto. Os que discordam disso afirmam que Azazel seria: a) uma
designação geográfica, tal como “precipício”; b) um substantivo abstrato significando “destruição”;
ou c) a junção das duas palavras `ez `ozel, “o bode que se afasta” (cf. Vulgata: “bode emissário”).
Mas nenhuma destas três interpretações alternativas tem consistência. O texto de Lv 16,8 ordena
que Aarão sorteie os dois bodes trazidos pelo povo, sendo que um deve ser destinado para Javé e o
outro para Azazel. Este deve representar, portanto, um outro ser divino ou semi-divino (azaz-el, “o
deus furioso”). O bode deve ser levado ao deserto, que é um dos lugares preferidos pelos demônios.
Na literatura apócrifa e pseudepigráfica, Azazel é representado por um ser demoníaco alado.
(Henoc, Apocalipse de Abraão).
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 7
Em Lv 16, preserva-se, portanto, uma antiga tradição em que se dedicava a Azazel um sacrifício.
Não se sabe se este sacrifício já estava originalmente vinculado ao perdão dos pecados como o atual
ritual de Lv 16. Poderia ter sido meramente um sacrifício para aplacar a cólera da divindade ou do
demônio. No ritual de Lv 16 sente-se a tendência de esvaziar a importância deste demônio. Ele não
passa de um figurante no todo do ritual. Azazel, em todo caso, não é um antagonista de Javé nem
um poder que pudesse ameaçar o Deus de Israel.
Asmodeu é o nome do espírito maligno que matou, nas respectivas noites de núpcias, os sete
maridos de Sara, filha de Raguel (Tob 3,8). Aconselhado pelo anjo Rafael, Tobias consegue
dominar este demônio, queimando, junto com o incenso, o coração e o fígado de um peixe.
Provavelmente Asmodeu tem sua origem no zoroastrismo persa (onde aesma deva significa
“espírito mau”). O judaísmo o transformou no rei dos demônios, entendendo-o como o
exterminador (hishmid) por excelência.
Um termo difícil de ser explicado etimologicamente é o termo Belia’al. Geralmente ele aparece na
composição “homens de Belia’al” ou “filhos de Belia’al”, expressões estas que se traduzem
normalmente por “gente má ou corrupta”, dando a entender que Belia’al poderia ser um substantivo
abstrato significando algo semelhante a “maldade, malvadeza, iniqüidade”. Não se usa Belia’al, no
AT, para designar Satanás. Somente em textos de Qumrã é que Belia’al figura como o líder do
poder das trevas. Assim também no Novo Testamento (2 Co 6,15). Em alguns textos do AT (p.ex.
Sl 18,5-6), onde se fala de “torrentes de Belia’al” em paralelismo com “morte” ou “Sheol”,
suspeita-se um fundo mitológico. Neste caso, o termo Belia’al poderia aludir a um poder mítico do
caos, o que se poderia corroborar também pelo fato de que as pessoas chamadas “filhos de Belia’al”
geralmente representam uma ameaça à ordem vigente (Jz 19,22; 20,13; 1 Rs 21,10-13; Pv 19,28).
Nos textos apócrifos, Belia’al aparece com muita freqüência como o anjo da maldade, o governante
deste mundo, o líder das forças demoníacas (p.ex. Martírio de Isaías, Livro dos Jubileus,
Testamento dos 12 Patriarcas, Oráculos Sibilinos). Os anjos de Belia’al se opõem dualisticamente
aos anjos de Deus; Belia’al desvia os humanos dos caminhos da justiça e os afasta, através da
promiscuidade, de Deus (Testamento dos 12 Patriarcas). Assim, também em Qumrã, Belia’al é o
título mais freqüente do líder do exército das trevas (Rolo das Guerras), que trava a batalha
escatológica contra os filhos da Luz. Dessa forma, Belia’al se transforma, na época
intertestamentária, num título para designar o Diabo.
Algo semelhante ocorreu com a designação Beel-Zebul. No NT, Jesus é acusado de expelir
demônios em nome de Beel-Zebul, o “príncipe dos demônios”, identificando-o portanto com o
Diabo (Mc 3,22-26 e paralelos). No AT, Beel-Zebul ainda não tem este significado. Em 2 Rs
1,2.3.6.16, o termo aparece na forma Ba’al Zebub (“o Senhor das moscas”) e designa o deus da
cidade de Acaron/Ecrom. Trata-se, portanto, de uma manifestação local da divindade cananéia
Ba’al, adorada na cidade filistéia de Acaron. Certamente o povo atribuía a esta divindade o poder de
curar pessoas doentes. Por este motivo, o rei Ocozias de Israel, que padecia de uma doença, enviou
mensageiros à cidade de Acaron.
Em Ugarit, na Síria, era freqüente o uso do epíteto “Ba’al Zebul” (“o príncipe Ba’al” ou “Ba’al das
alturas”) para designar o deus Ba’al. Assim, a forma Ba’al Zebub deve ser entendida como uma
corrupção intencional do título da divindade síria com o intuito de desmoralizar este deus
estrangeiro combatido pela fé israelita. O grande Ba’al sírio-cananeu transforma-se, assim, num
“deus das moscas”. Difícil é explicar como um título de um Deus estrangeiro se torna, na época
intertestamentária, designação para o Diabo. É possível que também aqui houvesse, a princípio,
uma tentativa de reduzir a autoridade de uma divindade não-israelita, transformando-a em mero
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 8
espírito demoníaco com poderes limitados e, portanto, incapaz de competir com Javé (à semelhança
do que ocorreu com a divindade shedu, cf. supra). Na época intertestamentária, com a difusão da
idéia do conflito escatológico entre Deus e os poderes das trevas, os antigos “demônios”,
impotentes no AT, teriam, então, reconquistado sua importância.
3. A serpente, o Leviatã e os serafins
Tratamento especial merece o complexo de concepções em torno da figura mitológica da serpente.
A serpente é um dos símbolos religiosos mais difundido nas culturas de todos os continentes,
adotando as mais diversas formas e significados. No Antigo Oriente, a serpente pode representar o
poder caótico e destruidor das águas primordiais por ocasião da criação do mundo. Neste contexto
ela também é conhecida pelo nome de Leviatã ( “o sinuoso”; Is 27,1; Sl 74,14; 104,26). Em Ugarit,
uma cidade da Síria, o Leviatã representa uma serpente ou um dragão marítimo com sete cabeças
que é abatido pelo deus Baal. Este dragão de sete cabeças é a forma adotada pela literatura judaica
extra-bíblica e está à base de Ap 12,3; 13,1; 17,3. O mesmo monstro marinho é também conhecido
por Raab (Sl 89,11; Jó 9,13; Is 51,9) ou Tannin (Is 27,1; 51,9: “o dragão”). Com o decorrer do
tempo, a figura mitológica assume os traços de um animal real, a saber o crocodilo (Jó 41,1-34; Ez
29,3-5).
Além disso, no Antigo Oriente, a serpente também se encontra em conexão com a árvore da vida ou
a árvore do mundo, que está no centro do universo criado. Aí a serpente pode estar enrolada no
tronco da árvore ou em suas raízes com o intuito de proteger a árvore ou, então, ao contrário, com o
objetivo de destruí-la. Em outras oportunidades, vincula-se a serpente está vinculada à destruição da
vida, em especial da vida eterna. Conhecida é a narrativa de como uma serpente furta dos humanos
a imortalidade em forma de uma planta ou de uma pele nova. É neste contexto que cabe a narrativa
de Gn 3,1-15. Este texto recebeu um peso dogmático muito grande na história do judaísmo e da
Igreja cristã, pois ele parecia dizer claramente de onde vinha o mal e em que consistia o pecado
humano. O livro da Sabedoria (Sab 2,24.), um livro deuterocanônico do último século a.C.,
identificou a serpente de Gn 3 com o Diabo que, por inveja de o ser humano ter sido criado à
imagem de Deus, ter-lhe-ia tirado a sua imortalidade. Esta interpretação foi assumida pelo judaísmo
e pelos cristãos e determina, em grande parte, a teologia atual.
No próprio texto de Gn 3, no entanto, a serpente não é um poder do mal, mas um animal criado por
Deus, um animal astuto, é verdade. A serpente também não é a origem do mal e da morte; ela não
exime Adão e Eva de sua culpa. Aparentemente a serpente de Gn 3 tem a função de tornar
compreensível a tentação que ocorre no interior de cada ser humano. Em todo caso, Gn 3 não
contém nenhum indício de que a serpente deve ser identificada com Satanás ou o Diabo. Sobre este
teremos que falar mais adiante.
Antes disso, no entanto, é necessário enfocar mais um aspecto do simbolismo religioso em torno da
serpente. A serpente não representa unicamente algo mau, ela pode também representar algo bom.
Neste contexto cabe a narrativa de Nm 21,1-9, que conta que muitos israelitas morreram no deserto
porque foram picados por cobras venenosas. Por isso, Moisés fez uma serpente de bronze e a pôs no
alto de um poste. E quando os israelitas picados de cobra olhavam para a serpente de bronze, eles
eram curados. Em 2 Rs 18,4, a serpente de bronze, designada Nehustã, foi eliminada do templo
durante a reforma do rei Ezequias. Aparentemente tratava-se de um símbolo de uma divindade à
qual se atribuía o poder da cura de picada de serpente venenosa. Esta ambigüidade do simbolismo
da serpente - que traz a morte, mas também a cura - pode estar relacionada com o que se chama de
“magia homeopática”: o mal se enfrente ou se afasta com as armas do próprio mal (cf. expulsar os
demônios pelo poder do próprio demônio!)
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 9
Falta dizer algo sobre os serafins. Este é o nome dado às serpentes venenosas na mencionada
história da serpente de bronze (Nm 21,6.8; cf. Dt 8,15). Aparentemente trata-se aí de um tipo de
serpente do deserto especialmente peçonhenta, a ponto de se poder dizer que suas picadas
“queimam” (saraf). Em Is 14,29; 30,6, os serafins transformam-se em serpentes aladas (voadoras),
assumindo características míticas. Este caráter mítico está presente também na terceira acepção do
termo, que se encontra na história da vocação de Isaías (Is 6,2.6). Aqui os serafins são criaturas
celestias em torno de Javé, que o adoram e estão à sua disposição. Estes serafins têm 3 pares de
asas, mas face e mãos humanas. Nada mais sabemos destes seres angelicais a serviço de Javé. Em
todo caso, perderam completamente a função de representar um poder demoníaco.
4. Satanás ou o Diabo.
Geralmente se dá um tratamento diferenciado a Satanás, por ele não ser considerado propriamente
um demônio ou um espírito maligno. Normalmente se atribui a Satanás um poder maior do que a
demônios. Ele é o poder do mal por excelência. Conforme Frederico Dattler (p.43), os demônios e
espíritos malignos são frutos da imaginação humana, enquanto que a existência de Satanás ou do
Diabo não pode ser questionada, ela é “tão segura e misteriosa quanto a do próprio Deus”. Enquanto
que há muitos demônios, Satanás é único; ele é considerado o antagonista de Deus, ao qual se
atribuem as tentações que tentam afastar de Deus (Mt 4). Esta imagem de Satanás já é bastante
influenciada pelo Novo Testamento e pela teologia da Igreja cristã posterior. O Antigo Testamento
ainda não conhece a noção de um poder do mal absoluto, independente, paralelo e antagônico a
Deus.
O termo hebraico Satã (satan) ou Satanás, que a Septuaginta (versão grega da Bíblia Hebraica)
traduz por diábolos, provém de uma raiz semita de significado bem profano. Usa-se o verbo
correspondente para descrever a inimizade, o ódio ou o rancor entre irmãos (Gn 27,41; 50,15) ou
entre pastores de ovelhas (Gn 26,20s) e, além disso, para designar o inimigo ou adversário no
campo político ou militar, geralmente pertencente a um outro povo (1 Sm 29,4; 1 Rs 11,14.23.25).
Num contexto judicial, o “inimigo” é o que inicia um processo contra alguém, tornando-se,
portanto, o “acusador” (Sl 109,20.29; cf. Ed 4,6: “a carta de acusação”). Neste último significado
Satanás também aparece no livro de Jó.
Em Jó 1-2, Satanás é um dos “filhos de Deus”, ou seja, um membro da corte ou conselho celestial
que cerca Deus e, juntamente com ele, governa o mundo. A noção do conselho celestial ou divino
tem sua origem na concepção oriental de que Deus se assemelha a um grande rei, sentado em seu
trono e cercado por conselheiros e serviçais. Em 1 Rs 22,19-23, temos um exemplo bem vivo deste
conselho. Os diversos integrantes discutem sobre a melhor maneira de como enganar o rei Acabe.
Em Jó 1-2, Satanás parece ter uma função especial neste conselho divino. Como um “olheiro ou
fiscal do rei”, Satanás perambula pela terra e observa o que acontece, trazendo as informações para
o “rei”, no caso Deus. Mas este olheiro assume, no caso de Jó, o papel de um “acusador” diante do
tribunal divino. Ele sugere a Deus que Jó pode estar sendo justo não por fidelidade a Javé, mas
porque isto lhe traz vantagens. Deus resolve apostar em Jó e permite que Satanás teste Jó, tirandolhe
os filhos, a propriedade e, por fim, a saúde. A mesma função de acusador Satanás assume em
Zc 3,1-4, onde aparece ao lado do anjo do Senhor.
Nestes textos, Satanás não é o inimigo ou adversário de Deus. Ele não tem poder de decisão. Ele
age de acordo com a vontade divina, sempre dentro do que é permitido por Deus. Ele não pode
atentar contra a vida de Jó. Satanás pode ser considerado, no máximo, um adversário de Jó, na
medida em que, num julgamento, mostra-se cético quanto à integridade de Jó. É legítimo perguntar:
Será que, na narrativa de Jó, Satanás tem a função de evitar o mal-estar de que Deus é o causador
do sofrimento humano? Pois a história de Jó mostra que Deus, na verdade, não quis o sofrimento de
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 10
Jó, apenas o permitiu sob certas condições e circunstâncias. Talvez tenhamos aqui um indício de
que a fé veterotestamentária não mais se podia satisfazer com a afirmação teológica um tanto banal
de que Deus não é somente o autor do bem, mas também do mal. O livro de Jó tenta corrigir esta
afirmação, narrando que o mal e o sofrimento não são a vontade de Deus; eles procedem apenas
indiretamente de Deus, na medida em que ele os permite. Mas Deus ainda continua no controle da
situação. Ainda não há uma transferência de poder para um personagem do mal.
Dentro desse desenvolvimento - de atribuir a arigem do mal apenas indiretamente a Deus sem,
contudo tirar-lhe o poder último sobre o que acontece no mundo - deve ser entendido também 1 Cr
21,1, onde consta: “Satnás quis prejudicar Israel e para tal induziu Davi a recensear Israel.” A
comparação com o texto paralelo, 2 Sm 24,1 (“A cólera do Senhor voltou a se inflamar contra
Israel. É que incitou a Davi contra eles, dizendo: ‘Vai fazer o recenseamento de Israel e Judá’”)
mostra claramente a diferença. Enquanto que o texto de 2 Samuel (século 6 a.C.) ainda pode atribuir
o castigo do recenseamento à ira de Deus, o texto de 1 Crônicas tem escrúpulos, preferindo afirmar
que o mal deve ser atyribuído a um outro personagem.
5. Lúcifer e a queda dos anjos
Atualmente identifica-se Satanás ou o Diabo com Lúcifer. Esta identificação se apóia numa sátira
contra o rei da Babilônia, que se encontra em Is 14, 4-23 (especialmente no versículo 12). Além
disso, a literatura apócrifa intertestamentária desenvolveu diversos elementos bíblicos que
desembocaram na história de que Satanás pertencia originalmente à corte celestial, onde liderou
uma rebelião de anjos contra Deus; por esse motivo, foi, juntamente com os anjos rebeldes,
castigado e lançado nas profundezas. As bases para esta narrativa se encontram no mesmo texto de
Isaías ( em especial Is 14,11-15), num lamento fúnebre contra o rei de Tiro, em Ez 28, 1-19 (em
especial versículos 16 e 17) e em Gn 6,1-4, em especial na parte que fala do matrimônio entre os
filhos de Deus com as filhas dos humanos e o resultado dessa união, os “gigantes”(v.2 e 4 ).
O texto de Is 14,12 transforma um antigo mito oriental num canto fúnebre irônico sobre o rei da
Babilônia. O poderoso rei é comparado, em sua glória, a um “astro brilhante”; e a sua morte à queda
deste astro sobre a terra: “Como caíste do céu, astro brilhante, filho da aurora? Como foste arrojado
por terra, tu que vencias as nações?” Não temos muitas informações sobre o mito que está à base do
texto bíblico. Ele talvez contivesse a história de um ser celestial ou humano que tentou ocupar
indevidamente um lugar no Olimpo dos deuses orientais ou cananeus, tendo sido, por isso, lançado
para fora do santo monte. A tradução de “astro brilhante” por “Lucifer” (“o portador da luz”) pela
versão latina (Vulgata) pretende dar um nome a este ser.
O texto de Ez 28 é bastante semelhante, pois parece apoiar-se no mesmo mito. As semelhanças
estendem-se a Gn 2-3, a vida dos primeiros seres humanos no jardim e sua expulsão do Éden.
Também Ez 28,11-19 é um lamento fúnebre, desta vez sobre o rei de Tiro. Como o primeiro ser
humano, o rei de Tiro foi criado perfeito e colocado, em meio a pedras preciosas, no jardim do
Éden, localizado no monte santo de Deus. As riquezas da cidade de Tiro, acumuladas através do
comércio, por extorsão e violência, são consideradas iniqüidade do rei (v.15-16). A beleza e o
esplendor do rei são ilícitos e podem ser comparados à arrogância do primeiro humano; eles são a
causa de sua expulsão da montanha sagrada pelo querubim, o guardião da montanha (v.16-17).
Como em Is 14,12, também aqui o tirano é lançado ao pó da terra, para espetáculo dos demais reis.
Ambos os textos proféticos usam um antigo mito, não por se interessarem por histórias de anjos
bons e maus, mas como metáfora do que irá acontecer a reis concretos e reais, que acumularam
riquezas e poder através de opressão e violência. O mito dá elementos para ilustrar a mensagem
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 11
profética. Nenhum dos textos menciona Satanás ou o Diabo ou outra personificação do mal. Os
livros apócrifos do judaísmo, em especial o Livro de Henoc/Enoque (século 2 a.C.) e a Vida de
Adão e Eva (após 70 d.C.), desenvolvem estes textos, com o recurso aos nefilim (“gigantes”ou
“caídos”) de Gn 6, 4, na direção da história da expulsão e queda dos anjos bons após uma rebelião
no céu, liderada por Satanás ou Lúcifer. O Antigo Testamento é bem mais sóbrio e recatado em
suas formulações sobre o que ocorre nas dimensões celestiais.
Conclusão
É difícil fazer uma sistematização do acima exposto. Também não podemos aprofundar o tema com
as novas perspectivas provenientes do Novo Testamento e da reflexão mantida na Igreja cristã.
Talvez possamos novamente acentuar o que é a visão típica do Antigo Testamento. Constatamos
que o Antigo Testamento é bastante sóbrio e recatado em sua “demonologia”. Não que o povo de
Israel não tivesse consciência das diversas facetas do mal que atacam e assolam as pessoas. Não que
o povo não tivesse tido experiências de como este mal pode ser muitos vezes extremamente
poderoso, assustador e inexplicável. Para tentar defini-lo e explicá-lo e, assim, de certa forma
controlá-lo, Israel lançava mão de nomes, termos e experiências provenientes do próprio meio ou,
então, do ambiente oriental mais amplo que o envolvia.
Mas Israel não só assumiu conceitos alheios, também refletiu o fenômeno da perspectiva de sua fé
monoteísta. Assim, na convicção de que não há poder superior ao Deus Javé, chega a afirmar que o
mal não pode provir de um poder paralelo a Deus, a fonte de todo bem. Afinal, tanto o bem quanto
o mal fazem parte de um mesmo mundo bastante humano. O Antigo Testamento sabe que os males
que existem no mundo estão aí por causa das fraquezas, limitações das pessoas, da soberba e do
egoísmo humanos. Mas este mundo e estes humanos pertencem a Deus - e somente a Ele - e por Ele
são amados. Não há, portanto, o que temer. Os poderes do mal nada podem para os que crêem na
fidelidade do Pai de Jesus Cristo.
Mas quando, em épocas mais recentes do Antigo Testamento, a mentalidade dualista tornou-se mais
presente na fé de Israel e, por motivos óbvios, havia escrúpulos em simplesmente atribuir a Javé a
origem do mal, já que Deus não quer nem visa o mal, buscou-se um personagem que pudesse
cumprir uma dupla função: a de evitar atribuir o mal a Javé e, ao mesmo tempo, de confirmar que
Deus continua no controle de toda a história. O conceito de conselho celestial e a vida judicial
fizeram surgir Satanás, um possível adversário ou acusador dos humanos, mas ao mesmo tempo um
servo de Deus, sem poder próprio.
Como vimos acima, também o Antigo Testamento não escapou da tentação de “demonizar” a
religião, as divindades e as crenças de outros povos. Aparentemente esta é uma tendência humana
presente em todas as culturas e religiões. É dessa tendência que surgem as discriminações e os
fanatismos que tanto queremos evitar.
Notas bibliográficas:
1) Para o que segue apoiei-me especialmente no verbete “Dämonen” no oitavo volume de
Theologische Realenzyklopädie e no segundo volume de Religion in Geschichte und
Gegenwart.
2) Kilpp, Nelson. “Zípora salva Moisés: Anotações sobre um texto estranho.”Estudos Teológicos
32, São Leopoldo, 1992, p.155-163.
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 12
3) Para os verbetes a seguir consultei, além de Dattler, Frederico. O mistério do Satanás: Diabo e
Inferno na Bíblia e na literatura universal. São Paulo, Paulinas, 1977; Freedman, David N. (ed.).
The Anchor Bible Dictionary. 6 volumes. New York etc., Doubleday, 1992, Theologische
Realenzyklopädie. Vol. 8. Berlin, De Gruyter, 1981, p.270-279, Botterweg, G.J. (Fabry, H.J.) &
Ringgren, H. (eds.). Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament. 8 volumes. Stuttgart,
Kohlhammer, 1973 a 1995, Hutter, M. & Görg, M. Verbete “Dämonen”. In: Religion in
Geschichte und Gegenwart. Vol.2. 4.ed. München, J.C.B.Mohr, 1999, p.534-536.