terça-feira, 18 de agosto de 2009

Os poderes demoníacos no Antigo Testamento


Disciplina: Teologia do Antigo Testamento
Prof. Dr. Nelson Kilpp
Quinto tema:
Os poderes demoníacos no Antigo Testamento
Pretende-se abordar brevemente os diversos poderes e entidades que, no Antigo Testamento,
personificaram o mal e continuam, de uma forma ou outra, sendo considerados forças maléficas
capazes de prejudicar as nossas vidas. O plural - “poderes demoníacos”- é importante, pois
evidencia que, no Antigo Testamento, ainda não se pode falar de uma única personificação do Mal,
a que no decorrer da história da Igreja cristã recebe o nome de Diabo. Também o Diabo ou Satanás
deve ser visto e entendido como uma entre muitas figuras às quais se atribuíam poderes destrutivos
que ultrapassavam a compreensão humana.
1. Os demônios: um fenômeno universal
Poderes demoníacos se encontram em todas as expressões religiosas de todas as épocas e lugares.
Para melhor ambientar as afirmações do Antigo Testamento sobre os poderes demoníacos dentro de
um contexto mais amplo, iniciamos com as tentativas das Ciências da Religião de entender, definir
e classificar este fenômeno. (1)
Já que não existe, na língua hebraica, nenhum termo genérico para designar um poder demoníaco e
uma vez que o termo “demônio” é de origem grega, parece conveniente iniciar a análise com o que
os antigos gregos, que cunharam o termo, entendiam pelo mesmo. Apesar de etimologicamente
incerto, o termo representava na antiga Grécia, desde Homero, uma divindade inferior ou, então, um
ser intermediário entre os deuses e os humanos, capaz de influenciar o cosmos ou a vida humana.
Esta influência podia ser, a princípio, tanto negativa quanto positiva. Sócrates, p.ex., acreditava que
um demônio era um espírito protetor bom. Mas já discípulos de Platão entendiam que os demônios
eram unicamente maus, pois não se queria atribuir atos de maldade às divindades oficiais. A partir
daí o aspecto negativo se torna predominante. Para a Septuaginta (versão grega do Antigo
Testamento) e o Novo Testamento o termo “demônio” designa exclusivamente um poder ou espírito
maligno. Também na atualidade os demônios são entendidos como seres supra-humanos ou infradivinos
capazes de ameaçar e prejudicar as pessoas. Assim, calamidades naturais, doenças,
deficiências físicas e mentais, acontecimentos inexplicáveis ou, então, a morte podem ser
explicadas como conseqüência de atuação demoníaca.
A crença em demônios - bem como a crença em anjos - é muito difundida tanto na Grécia antiga
quanto no Antigo Oriente Médio, tanto no antigo judaísmo e no Novo Testamento quanto na Idade
Média. Mas não só. Em todos os continentes, em religiões consideradas “primitivas”, mas também
na religiosidade moderna e pós-moderna, a crença em anjos e demônios está em alta. Demônios
fazem parte da vida assim como o fazem a desgraça, a doença e a morte.
Uma análise comparativa das religiões constata que os demônios podem ser classificados de acordo
com o mal que causam. Os demônios da sexualidade, por exemplo, ameaçam as pessoas com a
impureza sexual ou, na noite de núpcias, até com a morte. Insanidade, lepra, cegueira, mudez ou
surdez podem ser atribuídas, cada qual, a um demônio ou espírito maligno específico. Calamidades
naturais podem advir de demônios da natureza. Em muitos casos também a apostasia ou a falsa
doutrina é considerada de origem demoníaca ou “tentação” do demônio. Isso evidentemente se
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 2
relaciona com o fato de que, muitas vezes, os deuses de outros povos são equiparados a demônios,
pois que seduzem à idolatria. Em certos casos, também espíritos de pessoas mortas são
considerados demônios por causa de seu poder maligno. Em alguns casos até o desemprego ou a
falte de dinheiro podem ser atribuídos a forças demoníacas.
Os demônios também podem ser classificados de acordo com a sua morada preferida. Locais
assombrados por excelência são os lugares ermos, como ruínas, cemitérios, desertos, cavernas, bem
como matos ou montes. Muitos demônios fazem uso de elementos ou fenômenos da natureza para
manifestar-se, como, p.ex., tempestade, enchentes, granizo, estiagem ou fogo. Outros preferem a
escuridão da noite; a hora após a meia-noite é a sua hora preferida. Menos freqüente é a hora do
meio-dia, a hora da insolação (Sl 91,5s.).
Pelo seu aspecto físico, os demônios se destacam por serem extremamente feios, mesmo quando se
os imagina parecidos com os humanos. Com freqüência assumem a forma de animais, tais como
bodes, leões, lobos, cães, aves, serpentes (dragões), sapos ou insetos. São animais horripilentos ou
peçonhentos, animais de rapina, que se caracterizam por sua voracidade ou capacidade de causar
dano. Às vezes, os demônios são representados como seres mistos, metade animal e metade pessoa.
Isso talvez aponte para a ambigüidade destes demônios: eles são, ao mesmo tempo, monstruosos,
mas também imperfeitos e, portanto, vulneráveis.
Ao contrário das divindades oficiais, tidas por sábias, poderosas e basicamente imbatíveis, os
demônios podem ser vencidos ou, então, mantidos à distância por meio de astúcia, feitiços,
encantamentos, palavras ou ritos mágicos. O xamã ou o exorcista pode recorrer a gritos, palavras
mágicas fortes (às vezes em língua estrangeira) ou imposição de mãos para afastar os maus
espíritos. Para manter um demônio telúrico à distância, joga-se lama, areia, sal ou cinza na cabeça
ou no corpo da pessoa possuída ou ameaçada. Muitas vezes, se alcança o mesmo resultadi
carregando talismãs ou amuletos (está a qui a origem das “jóias”). Para afastar demônios da
sexualidade, por outro lado, recorre-se a banhos e lavagens rituais, que purificam as pessoas,
tornando-as aptas para o culto. Em determinadas, circunstâncias, também vinho, sangue, azeite ou
saliva têm efeito purificador e são capazes de expulsar demônios.
2. Os demônios no Antigo Testamento
Já foi dito acima que, no Antigo Testamento, não se conhece um termo específico para designar um
demônio. Pelo contrário, há vários termos e nomes que assinalam poderes demoníacos. Ainda não
existe a figura clássica do Diabo, a personificação por excelência do mal. Antes de analisar estes
termos e nomes, no entanto, cabe uma outra constatação. No Antigo Testamento , Israel tem a
tendência de incorporar os seres demoníacos em sua fé, atribuindo as características demoníacas a
seu Deus, Javé.
2.1. Os traços demoníacos de Deus
No Antigo Testamento, o Deus de Israel exige ser adorado como Deus único. Esta exclusividade do
Deus bíblico é responsável pela falta de um dualismo radical entre o bem e o mal e também pela
inexistência de uma demonologia no Antigo Testamento. Sendo Javé único, ele se apresenta como
um Deus ambivalente: ele causa o bem, mas também está na origem do mal. Jó confessa: “Se
aceitamos de Deus os bens, não deveríamos também aceitar os males?” (Jó 2,10). O próprio Moisés
tem que ouvir da boca de Javé: “E quem é que dá a boca ao homem? Ou quem faz o surdo e o
mudo, o que vê e o cego?” (Ex 4,11). Isso talvez escandalize alguns leitores. Como Deus pode
causar os males e as deficiências? Mas esta é apenas a conseqüência lógica da monolatria. Se há
somente um único Deus, dele há de provir tanto o bem quanto o mal.
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 3
Encontramos, no Antigo Testamento, diversos textos em que transparece essa tendência. Ao adotar
antigas tradições, geralmente pré-israelitas, a teologia oficial suprime os demônios das mesmas,
transferindo os traços demoníacos a Javé. Mas nem sempre se conseguiu apagar completamente os
vestígios de demônios, que comprovam a existência de uma crença em demônios não somente em
povos vizinhos, mas também entre os próprios israelitas. Tomemos por exemplo os textos de Gn
32,23-33; Ex 4,24-26 e Ex 12.
a) Gn 32,23-33 contém um conto popular em que Jacó luta com Deus no passo do rio
Jaboc/Jaboque, na Transjordânia. O texto narra que, após ter passado a sua família e os seus bens,
Jacó permaneceu só à margem do Jaboc. Ao cair a noite, Jacó é atacado por um “homem”, com o
qual se debate até o romper da aurora. Ao anunciar-se a luz do dia, o “homem” aparentemente
desiste do combate e pede para ser solto, o que ocorre após Jacó receber a bênção solicitada, mas
não a resposta à pergunta pela identidade do atacante. Apesar de o “homem” que lutara com Jacó
ser identificado, no final do texto, com o Deus de Israel, é inquestionável que Israel adotou aqui
uma antiga tradição de um espírito maligno do rio Jaboc, que, à noite, assaltava os passantes
incautos e que perdia suas forças com o nascer do dia. Ao recontar a história, Israel não só mostra
que seu antepassado Jacó foi mais forte ou esperto que o demônio do rio, mas também que este
demônio perde sua identidade e autonomia. Quem lutou com Jacó foi ninguém menos do que o
próprio Deus de Israel. Com isso, Javé assume as características do espírito fluvial, inclusive suas
imperfeições e limitações a espaço e tempo. A partir desta identificação explicam-se as três
etiologias do texto: Israel (“Deus peleja”) é interpretado por “lutaste com Deus”; o nome da
localidade, Peniel/Fanuel, é explicado a partir do fato de Jacó, no combate, “ter visto a face de
Deus”; e o ferimento na coxa de Jacó entende-se que tenha sido causado por Deus, razão pela qual
se proíbe, em Israel, comer o nervo ciático.
b) Num dos textos mais misteriosos do Antigo Testamento, Ex 4,24-26, Javé ataca Moisés e tenta
matá-lo quando este pára, juntamente com sua mulher e filho, pára numa pousada, certamente para
passar a noite. O texto narra que, durante o estranho combate, Séfora/Zípora, a mulher de Moisés,
salva seu marido circuncidando seu filho e jogando o prepúcio recém-cortado e ainda sangrento
sobre a virilha de Moisés. A história deve ser muito antiga, pois a circuncisão é feita com uma pedra
e, pela primeira e única vez no Antigo Testamento, ela é realizada por uma mulher. Não se sabe por
que motivo Javé quer matar o recém vocacionado Moisés. Parece um contra-senso. Explicações
psicológicas procuram uma eventual culpa de Moisés que pudesse explicar o ataque de Deus. Em
outra oportunidade (2) aventei a hipótese de que Javé, o Deus midianita, teria atacado Moisés, o
não-midianita, por ter invadido território restrito a este povo. Por ser midianita, Séfora não é
atacada; além disso, ela sabe como lidar com este Javé, já que o conhece. Neste caso, o Deus Javé
dos midianitas teria tido originalmente as características e também limitações de um demônio do
deserto. O sangue do prepúcio jogado em Moisés consegue afastar Javé e fazê-lo desistir de seu
intento.
Outra possibilidade de se entender o texto é considerar que a tradição original ainda não tratava de
Javé, mas um demônio do deserto que, à noite, atacava as pessoas que paravam na pousada situada
em seu território. Neste caso, ao incorporar a tradição pré-israelita em sua própria história com seu
Deus, Israel substitui o desconhecido demônio por Javé, atribuindo, assim, a Javé as peculiaridades
do mesmo.
c) O terceiro exemplo mostra claramente como Javé atrai a si tradições originalmente vinculadas a
poderes maléficos ou demoníacos. Trata-se da história da origem da Páscoa, Ex 12, em especial os
v. 21-23. Dentro do contexto da última praga que se abate sobre o Egito e que resulta na morte dos
primogênitos egípcios, se insere a celebração da Páscoa israelita. Moisés ordena que as famílias
israelitas matem o cordeiro da Páscoa e, com o sangue dos cordeiros, untem as molduras das portas
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 4
de suas casas. Pois quando Javé vier para matar as crianças egípcias e vir as portas untadas de
sangue, “saltará vossas portas, e não deixará o Exterminador penetrar em vossas casas para ferir”.
(Ex 12,23)
O texto ainda deixa entrever que, na origem, a história não falava de Javé, mas de um Exterminador
(mashhit) que aparentemente representava uma ameaça para os primogênitos e que podia ser
mantido à distância através da realização de um determinado ritual de sangue. Geralmente se afirma
que este ritual de sangue provém do contexto de antigos grupos de pastores semi-nômades que, no
início da primavera, talvez em noite de lua cheia antes de partirem com seus rebanhos para (ou
chegarem com seus rebanhos em) uma nova pastagem, ofereciam sacrifícios animais e realizavam
um ritual de sangue para protegerem a si mesmos e aos seus rebanhos do ataque de um demônio
“exterminador”.
No atual contexto da história da salvação do povo de Israel, em Ex 12, todas as características deste
espírito destruidor são assumidas por Javé. Surge, assim, de um lado, um problema teológico: Deus
pode ser tão cruel a ponto de exigir o sacrifício de crianças? Por outro lado, pode-se afirmar que o
poder do demônio destruidor não mais precisa amedrontar o povo, já que Javé é mais forte do que
todo e qualquer poder demoníaco e é ele que liberta da opressão.
Os exemplos acima mostram como Israel procurou, no decorrer de sua história, integrar em sua fé
tradições que preservavam experiências com poderes demoníacos. Esta integração certamente foi
possível porque as experiências preservadas nos textos analisados acima estavam relacionadas com
grupos populacionais ou tribos que posteriormente fizeram parte da grandeza político-religiosa
chamada Israel. Ao tornar-se parte de Israel, cada um destes grupos proto-israelitas trouxe consigo
suas tradições e com elas contribuiu para a rica história de salvação do povo de Israel. Esta
integração fez com que, aos poucos, o Deus único da teologia oficial se sobrepusesse aos poderes
demoníacos que ameaçavam a vida do povo. Certamente estar nas mãos de Javé era menos
ameaçador do que estar à mercê de poderes demoníacos.
2.2. Termos designativos de demônios no Antigo Testamento (3)
Vimos que nem sempre a fé exclusiva em Javé exigida pela religião oficial conseguiu apagar todos
os vestígios de demônios e espíritos maus que marcavam a religiosidade dos povos vizinhos e
certamente também de grande parte da população israelita. No Antigo Testamento encontramos
diversas designações que parecem representar poderes demoníacos específicos. Falaremos, a seguir,
primeiramente de termos coletivos e genéricos e, em segundo lugar, de alguns termos que podem
ser entendidos como nomes próprios de demônios ou espíritos malignos específicos. A
nomenclatura é bastante ampla e compreensiva, mas certamente incompleta.
2.2.1. Designações genéricas e coletivas
Dentre os termos genéricos usados para designar grupos de demônios, os mais freqüentes são os
seguintes:
Os tsiyyim (Is 13,21; 34,14; Jr 50,30; Sl 72,9) podem designar tanto os habitantes como os animais
ou demônios do deserto (tsiyyah = “aridez”). Confundem-se aqui demônios do deserto com
animais que habitam lugares abandonados e desertos, como hienas, chacais, corujas, avestruzes,
cobras e linces. Ambos, demônios e animais, podem ser mencionados lado a lado. Muitas vezes
não mais se sabe se se fala de meros animais ameaçadores com significado simbólico ou de
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 5
demônios com traços animalescos. O mesmo vale para o termo paralelo `iyyim (“hienas”) e os
tannim (“chacais”).
Animais feios e ferozes ganham significado simbólico também na literatura apocalíptica. Os quatro
animais que, conforme Dn 7, saem do mar, um após outro, são cada vez mais ferozes, feios e
ameaçadores e representam o aspecto cada vez mais demoníaco dos impérios opressores e
“devoradores”. O quarto animal é tão espantoso e terrível que não mais há como compará-lo a um
animal real.
Os se’irim , originalmente “bodes” (da raiz semita sa’ir, “peludo”) foram entendidos como sendo
seres demoníacos em alguns textos (Lv 17,7; 2 Rs 23,8; Is 13,21; 34,14; 2 Cr 11,15). Provavelmente
eram demônios do deserto com a forma e as características de um bode, ou seja, eram peludos,
agressivos e fedorentos. Podem ser comparados aos sátiros gregos, representados com orelhas
grandes e pontiagudas, patas e rabo de bode. A figura do bode lembra também a divindade romana
Pã (metade bode, metade pessoa), que vai dar a matriz para muitas representações populares do
Diabo na Idade Média, conhecidas até hoje. Em alguns textos, fala-se explicitamente de um culto a
estes se’irim (Lv 17,7; 2 Cr 11,15), mas em outras passagens não mais se pode decidir se se trata de
seres demoníacos ou simplesmente de animais, ou seja, cabritos do deserto (Is 13,21; 34,14)
Os shedim (Dt 32,17; Sl 106,37) devem estar relacionados com o termo acádico shedu(m), que pode
designar um demônio maligno ou um espírito protetor benigno (neste último sentido somente no
singular). Enquanto que, no acádico, encontramos quase que somente a forma no singular, o Antigo
Testamento conhece somente o plural. As duas únicas referências no Antigo Testamento
mencionam sacrifícios aos shedim. Em Dt 32,17, os shedim se encontram em paralelo a “deuses
novos, desconhecidos”, no contexto da crítica à idolatria, aparentando ser uma designação genérica
para divindades estrangeiras. Em Sl 106,37, também no contexto da idolatria, afirma-se que
crianças eram sacrificadas aos shedim. Neste caso, estes são comparáveis à divindade Moloc, ao
qual se ofereciam crianças em sacrifício, em especial no vale de Hinom, em Jerusalém (cf. 2 Rs
16,3; 21,6). No Antigo Testamento, o termo não se refere mais a um poder demoníaco, mas designa
bem genericamente divindades estrangeiras, que constituem uma tentação para Israel e cuja
adoração é proibida.
Neste contexto, cabe mencionar os elilim (Sl 96,5; Bar 4,7), “ídolos”, que, na verdade, também não
representam um poder demoníaco. Muitas vezes, no entanto, as divindades de outros povos são
menosprezadas e consideradas meros ídolos ou demônios com autoridade reduzida. Ídolos, no
entanto, bem como divindades estrangeiras não podem ser confundidas com poderes demoníacos.
Isso vale também para Beel-Zebul (veja abaixo). Tanto no Antigo Testamento quanto na história da
Igreja cristã, houve sempre tentativas de demonizar as divindades e crenças de outras nações e,
assim, identificar idolatria ou apostasia com adoração a demônios.
Apesar de não serem designativos de grupos, cabe intercalar aqui três termos que se encontram no
singular, mas têm caráter genérico, ou seja, não (mais) são nomes próprios. Trata-se de reshef,
qeteb e deber.
Reshef geralmente se traduz por “febre, epidemia, pestilência” (Dt 32,24; Hc 3,5: Sl 78,48: talvez
também Jó 5,7 e Ct 8,6). Na origem, Reshef era uma conhecida divindade, adorada em todo o
Antigo Oriente e vinculada ao mundo dos mortos, à peste e à guerra (equiparável ao deus
babilônico Nergal). Devido às características deste deus, o reshef se transforma, no Antigo
Testamento, num espírito demoníaco que acompanha Javé quando este se revela, trazendo doença,
morte e destruição. Geralmente o termo reshef vem acompanhado de qeteb (Dt 32,24: “epidemia”) e
deber (Hc 3,5: “peste”). No AT, a antiga divindade está em vias de desaparecer por trás de
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 6
fenômenos naturais como as “chamas de fogo” de uma paixão (Ct 8,6), os “relâmpagos (flechas) do
arco” (Sl 76,4) ou, então, simplesmente a “febre” (Hc 3,5).
Presume-se que também o termo hebraico qeteb ( Dt 32,24; Is 28,2; Os 13,14; Sl 91,6) designe, na
origem, um demônio (relacionado à deusa síria Qatiba) que provoca doença, destruição e morte.
Mas não há certeza de que o AT ainda preserve esta concepção. A certeza ainda é menor no tocante
ao termo deber (Os 13,14; Hc 3,5). Mesmo que se suponha a existência de um demônio do mundo
dos mortos que espalha doença, peste e morte, o AT não mais deixa transparecer esta visão.
Geralmente o termo designa a peste bubônica (p.ex., Ex 5,3; Lv 26,25).
O termo refaim pode designar uma nação de gigantes ou, então, os espíritos de mortos (Jó 26,5; Is
26,14.19). Muitas vezes o termo é traduzido por “sombras”. Apesar de os mortos serem
considerados espíritos malignos em muitas culturas, não há indícios de que em Israel tenha sido
assim. A narrativa de 1 Sm 28, conforme a qual Saul consulta uma necromante para entrar em
contato com o falecido Samuel, se encontra totalmente isolada no Antigo Testamento. Mesmo em 1
Sm 28, o falecido Samuel não é apresentado como um espírito maléfico.
2.2.2. Nomes próprios de demônios
Há diversos termos que aparentemente designam demônios individuais. Entre eles se destacam os
seguintes:
A Lilith aparece uma única vez no Antigo Testamento (Is 34,14), mas é mencionada diversas vezes
na literatura judaica posterior (no Talmud e na literatura cabalística, midráshica e folclórica).
Tradicionalmente se vincula o nome Lilith ao termo hebraico layl, “noite”; ela seria então um
demônio da noite. Mas provavelmente o termo deve ser identificado com o acádico lilitu (feminino
de lilu), que designa uma espécie de deusa menor, conhecida na Mesopotâmea por atacar mulheres
em trabalho de parto (à semelhança da divindade Lamashtu). Na tradição judaica, Lilith
aparentemente ameaçava devorar bebês recém-nascidos, de modo que as mães se protegiam através
de encantamentos e amuletos (cf. a tradução da Vulgata, em Is 34,14: lamia). O Antigo Testamento
nada disso menciona. O texto bíblico a coloca como habitante de lugares desolados e inóspitos, na
companhia de animais assustadores e outros seres demoníacos.
O Talmud representa Lilith como uma mulher demoníaca, com cabelos longos e asas, que pode
atacar homens que dormem sozinhos. Desenhos provenientes da comunidade judaica da
Mesopotâmea (séc. I d.C.) representam Lilith nua, de cabelos soltos e acorrentada, o que reforça o
aspecto sexual de Lilith. A literatura cabalística e midráshica desenvolve estas tradições criando
lendas por vezes fantásticas a respeito de Lilith.
O significado do termo `Azazel (Lv 16,8.10.26) não é totalmente certo, mas é muito provável que
se tratava de um demônio do deserto. Os que discordam disso afirmam que Azazel seria: a) uma
designação geográfica, tal como “precipício”; b) um substantivo abstrato significando “destruição”;
ou c) a junção das duas palavras `ez `ozel, “o bode que se afasta” (cf. Vulgata: “bode emissário”).
Mas nenhuma destas três interpretações alternativas tem consistência. O texto de Lv 16,8 ordena
que Aarão sorteie os dois bodes trazidos pelo povo, sendo que um deve ser destinado para Javé e o
outro para Azazel. Este deve representar, portanto, um outro ser divino ou semi-divino (azaz-el, “o
deus furioso”). O bode deve ser levado ao deserto, que é um dos lugares preferidos pelos demônios.
Na literatura apócrifa e pseudepigráfica, Azazel é representado por um ser demoníaco alado.
(Henoc, Apocalipse de Abraão).
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 7
Em Lv 16, preserva-se, portanto, uma antiga tradição em que se dedicava a Azazel um sacrifício.
Não se sabe se este sacrifício já estava originalmente vinculado ao perdão dos pecados como o atual
ritual de Lv 16. Poderia ter sido meramente um sacrifício para aplacar a cólera da divindade ou do
demônio. No ritual de Lv 16 sente-se a tendência de esvaziar a importância deste demônio. Ele não
passa de um figurante no todo do ritual. Azazel, em todo caso, não é um antagonista de Javé nem
um poder que pudesse ameaçar o Deus de Israel.
Asmodeu é o nome do espírito maligno que matou, nas respectivas noites de núpcias, os sete
maridos de Sara, filha de Raguel (Tob 3,8). Aconselhado pelo anjo Rafael, Tobias consegue
dominar este demônio, queimando, junto com o incenso, o coração e o fígado de um peixe.
Provavelmente Asmodeu tem sua origem no zoroastrismo persa (onde aesma deva significa
“espírito mau”). O judaísmo o transformou no rei dos demônios, entendendo-o como o
exterminador (hishmid) por excelência.
Um termo difícil de ser explicado etimologicamente é o termo Belia’al. Geralmente ele aparece na
composição “homens de Belia’al” ou “filhos de Belia’al”, expressões estas que se traduzem
normalmente por “gente má ou corrupta”, dando a entender que Belia’al poderia ser um substantivo
abstrato significando algo semelhante a “maldade, malvadeza, iniqüidade”. Não se usa Belia’al, no
AT, para designar Satanás. Somente em textos de Qumrã é que Belia’al figura como o líder do
poder das trevas. Assim também no Novo Testamento (2 Co 6,15). Em alguns textos do AT (p.ex.
Sl 18,5-6), onde se fala de “torrentes de Belia’al” em paralelismo com “morte” ou “Sheol”,
suspeita-se um fundo mitológico. Neste caso, o termo Belia’al poderia aludir a um poder mítico do
caos, o que se poderia corroborar também pelo fato de que as pessoas chamadas “filhos de Belia’al”
geralmente representam uma ameaça à ordem vigente (Jz 19,22; 20,13; 1 Rs 21,10-13; Pv 19,28).
Nos textos apócrifos, Belia’al aparece com muita freqüência como o anjo da maldade, o governante
deste mundo, o líder das forças demoníacas (p.ex. Martírio de Isaías, Livro dos Jubileus,
Testamento dos 12 Patriarcas, Oráculos Sibilinos). Os anjos de Belia’al se opõem dualisticamente
aos anjos de Deus; Belia’al desvia os humanos dos caminhos da justiça e os afasta, através da
promiscuidade, de Deus (Testamento dos 12 Patriarcas). Assim, também em Qumrã, Belia’al é o
título mais freqüente do líder do exército das trevas (Rolo das Guerras), que trava a batalha
escatológica contra os filhos da Luz. Dessa forma, Belia’al se transforma, na época
intertestamentária, num título para designar o Diabo.
Algo semelhante ocorreu com a designação Beel-Zebul. No NT, Jesus é acusado de expelir
demônios em nome de Beel-Zebul, o “príncipe dos demônios”, identificando-o portanto com o
Diabo (Mc 3,22-26 e paralelos). No AT, Beel-Zebul ainda não tem este significado. Em 2 Rs
1,2.3.6.16, o termo aparece na forma Ba’al Zebub (“o Senhor das moscas”) e designa o deus da
cidade de Acaron/Ecrom. Trata-se, portanto, de uma manifestação local da divindade cananéia
Ba’al, adorada na cidade filistéia de Acaron. Certamente o povo atribuía a esta divindade o poder de
curar pessoas doentes. Por este motivo, o rei Ocozias de Israel, que padecia de uma doença, enviou
mensageiros à cidade de Acaron.
Em Ugarit, na Síria, era freqüente o uso do epíteto “Ba’al Zebul” (“o príncipe Ba’al” ou “Ba’al das
alturas”) para designar o deus Ba’al. Assim, a forma Ba’al Zebub deve ser entendida como uma
corrupção intencional do título da divindade síria com o intuito de desmoralizar este deus
estrangeiro combatido pela fé israelita. O grande Ba’al sírio-cananeu transforma-se, assim, num
“deus das moscas”. Difícil é explicar como um título de um Deus estrangeiro se torna, na época
intertestamentária, designação para o Diabo. É possível que também aqui houvesse, a princípio,
uma tentativa de reduzir a autoridade de uma divindade não-israelita, transformando-a em mero
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 8
espírito demoníaco com poderes limitados e, portanto, incapaz de competir com Javé (à semelhança
do que ocorreu com a divindade shedu, cf. supra). Na época intertestamentária, com a difusão da
idéia do conflito escatológico entre Deus e os poderes das trevas, os antigos “demônios”,
impotentes no AT, teriam, então, reconquistado sua importância.
3. A serpente, o Leviatã e os serafins
Tratamento especial merece o complexo de concepções em torno da figura mitológica da serpente.
A serpente é um dos símbolos religiosos mais difundido nas culturas de todos os continentes,
adotando as mais diversas formas e significados. No Antigo Oriente, a serpente pode representar o
poder caótico e destruidor das águas primordiais por ocasião da criação do mundo. Neste contexto
ela também é conhecida pelo nome de Leviatã ( “o sinuoso”; Is 27,1; Sl 74,14; 104,26). Em Ugarit,
uma cidade da Síria, o Leviatã representa uma serpente ou um dragão marítimo com sete cabeças
que é abatido pelo deus Baal. Este dragão de sete cabeças é a forma adotada pela literatura judaica
extra-bíblica e está à base de Ap 12,3; 13,1; 17,3. O mesmo monstro marinho é também conhecido
por Raab (Sl 89,11; Jó 9,13; Is 51,9) ou Tannin (Is 27,1; 51,9: “o dragão”). Com o decorrer do
tempo, a figura mitológica assume os traços de um animal real, a saber o crocodilo (Jó 41,1-34; Ez
29,3-5).
Além disso, no Antigo Oriente, a serpente também se encontra em conexão com a árvore da vida ou
a árvore do mundo, que está no centro do universo criado. Aí a serpente pode estar enrolada no
tronco da árvore ou em suas raízes com o intuito de proteger a árvore ou, então, ao contrário, com o
objetivo de destruí-la. Em outras oportunidades, vincula-se a serpente está vinculada à destruição da
vida, em especial da vida eterna. Conhecida é a narrativa de como uma serpente furta dos humanos
a imortalidade em forma de uma planta ou de uma pele nova. É neste contexto que cabe a narrativa
de Gn 3,1-15. Este texto recebeu um peso dogmático muito grande na história do judaísmo e da
Igreja cristã, pois ele parecia dizer claramente de onde vinha o mal e em que consistia o pecado
humano. O livro da Sabedoria (Sab 2,24.), um livro deuterocanônico do último século a.C.,
identificou a serpente de Gn 3 com o Diabo que, por inveja de o ser humano ter sido criado à
imagem de Deus, ter-lhe-ia tirado a sua imortalidade. Esta interpretação foi assumida pelo judaísmo
e pelos cristãos e determina, em grande parte, a teologia atual.
No próprio texto de Gn 3, no entanto, a serpente não é um poder do mal, mas um animal criado por
Deus, um animal astuto, é verdade. A serpente também não é a origem do mal e da morte; ela não
exime Adão e Eva de sua culpa. Aparentemente a serpente de Gn 3 tem a função de tornar
compreensível a tentação que ocorre no interior de cada ser humano. Em todo caso, Gn 3 não
contém nenhum indício de que a serpente deve ser identificada com Satanás ou o Diabo. Sobre este
teremos que falar mais adiante.
Antes disso, no entanto, é necessário enfocar mais um aspecto do simbolismo religioso em torno da
serpente. A serpente não representa unicamente algo mau, ela pode também representar algo bom.
Neste contexto cabe a narrativa de Nm 21,1-9, que conta que muitos israelitas morreram no deserto
porque foram picados por cobras venenosas. Por isso, Moisés fez uma serpente de bronze e a pôs no
alto de um poste. E quando os israelitas picados de cobra olhavam para a serpente de bronze, eles
eram curados. Em 2 Rs 18,4, a serpente de bronze, designada Nehustã, foi eliminada do templo
durante a reforma do rei Ezequias. Aparentemente tratava-se de um símbolo de uma divindade à
qual se atribuía o poder da cura de picada de serpente venenosa. Esta ambigüidade do simbolismo
da serpente - que traz a morte, mas também a cura - pode estar relacionada com o que se chama de
“magia homeopática”: o mal se enfrente ou se afasta com as armas do próprio mal (cf. expulsar os
demônios pelo poder do próprio demônio!)
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 9
Falta dizer algo sobre os serafins. Este é o nome dado às serpentes venenosas na mencionada
história da serpente de bronze (Nm 21,6.8; cf. Dt 8,15). Aparentemente trata-se aí de um tipo de
serpente do deserto especialmente peçonhenta, a ponto de se poder dizer que suas picadas
“queimam” (saraf). Em Is 14,29; 30,6, os serafins transformam-se em serpentes aladas (voadoras),
assumindo características míticas. Este caráter mítico está presente também na terceira acepção do
termo, que se encontra na história da vocação de Isaías (Is 6,2.6). Aqui os serafins são criaturas
celestias em torno de Javé, que o adoram e estão à sua disposição. Estes serafins têm 3 pares de
asas, mas face e mãos humanas. Nada mais sabemos destes seres angelicais a serviço de Javé. Em
todo caso, perderam completamente a função de representar um poder demoníaco.
4. Satanás ou o Diabo.
Geralmente se dá um tratamento diferenciado a Satanás, por ele não ser considerado propriamente
um demônio ou um espírito maligno. Normalmente se atribui a Satanás um poder maior do que a
demônios. Ele é o poder do mal por excelência. Conforme Frederico Dattler (p.43), os demônios e
espíritos malignos são frutos da imaginação humana, enquanto que a existência de Satanás ou do
Diabo não pode ser questionada, ela é “tão segura e misteriosa quanto a do próprio Deus”. Enquanto
que há muitos demônios, Satanás é único; ele é considerado o antagonista de Deus, ao qual se
atribuem as tentações que tentam afastar de Deus (Mt 4). Esta imagem de Satanás já é bastante
influenciada pelo Novo Testamento e pela teologia da Igreja cristã posterior. O Antigo Testamento
ainda não conhece a noção de um poder do mal absoluto, independente, paralelo e antagônico a
Deus.
O termo hebraico Satã (satan) ou Satanás, que a Septuaginta (versão grega da Bíblia Hebraica)
traduz por diábolos, provém de uma raiz semita de significado bem profano. Usa-se o verbo
correspondente para descrever a inimizade, o ódio ou o rancor entre irmãos (Gn 27,41; 50,15) ou
entre pastores de ovelhas (Gn 26,20s) e, além disso, para designar o inimigo ou adversário no
campo político ou militar, geralmente pertencente a um outro povo (1 Sm 29,4; 1 Rs 11,14.23.25).
Num contexto judicial, o “inimigo” é o que inicia um processo contra alguém, tornando-se,
portanto, o “acusador” (Sl 109,20.29; cf. Ed 4,6: “a carta de acusação”). Neste último significado
Satanás também aparece no livro de Jó.
Em Jó 1-2, Satanás é um dos “filhos de Deus”, ou seja, um membro da corte ou conselho celestial
que cerca Deus e, juntamente com ele, governa o mundo. A noção do conselho celestial ou divino
tem sua origem na concepção oriental de que Deus se assemelha a um grande rei, sentado em seu
trono e cercado por conselheiros e serviçais. Em 1 Rs 22,19-23, temos um exemplo bem vivo deste
conselho. Os diversos integrantes discutem sobre a melhor maneira de como enganar o rei Acabe.
Em Jó 1-2, Satanás parece ter uma função especial neste conselho divino. Como um “olheiro ou
fiscal do rei”, Satanás perambula pela terra e observa o que acontece, trazendo as informações para
o “rei”, no caso Deus. Mas este olheiro assume, no caso de Jó, o papel de um “acusador” diante do
tribunal divino. Ele sugere a Deus que Jó pode estar sendo justo não por fidelidade a Javé, mas
porque isto lhe traz vantagens. Deus resolve apostar em Jó e permite que Satanás teste Jó, tirandolhe
os filhos, a propriedade e, por fim, a saúde. A mesma função de acusador Satanás assume em
Zc 3,1-4, onde aparece ao lado do anjo do Senhor.
Nestes textos, Satanás não é o inimigo ou adversário de Deus. Ele não tem poder de decisão. Ele
age de acordo com a vontade divina, sempre dentro do que é permitido por Deus. Ele não pode
atentar contra a vida de Jó. Satanás pode ser considerado, no máximo, um adversário de Jó, na
medida em que, num julgamento, mostra-se cético quanto à integridade de Jó. É legítimo perguntar:
Será que, na narrativa de Jó, Satanás tem a função de evitar o mal-estar de que Deus é o causador
do sofrimento humano? Pois a história de Jó mostra que Deus, na verdade, não quis o sofrimento de
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 10
Jó, apenas o permitiu sob certas condições e circunstâncias. Talvez tenhamos aqui um indício de
que a fé veterotestamentária não mais se podia satisfazer com a afirmação teológica um tanto banal
de que Deus não é somente o autor do bem, mas também do mal. O livro de Jó tenta corrigir esta
afirmação, narrando que o mal e o sofrimento não são a vontade de Deus; eles procedem apenas
indiretamente de Deus, na medida em que ele os permite. Mas Deus ainda continua no controle da
situação. Ainda não há uma transferência de poder para um personagem do mal.
Dentro desse desenvolvimento - de atribuir a arigem do mal apenas indiretamente a Deus sem,
contudo tirar-lhe o poder último sobre o que acontece no mundo - deve ser entendido também 1 Cr
21,1, onde consta: “Satnás quis prejudicar Israel e para tal induziu Davi a recensear Israel.” A
comparação com o texto paralelo, 2 Sm 24,1 (“A cólera do Senhor voltou a se inflamar contra
Israel. É que incitou a Davi contra eles, dizendo: ‘Vai fazer o recenseamento de Israel e Judá’”)
mostra claramente a diferença. Enquanto que o texto de 2 Samuel (século 6 a.C.) ainda pode atribuir
o castigo do recenseamento à ira de Deus, o texto de 1 Crônicas tem escrúpulos, preferindo afirmar
que o mal deve ser atyribuído a um outro personagem.
5. Lúcifer e a queda dos anjos
Atualmente identifica-se Satanás ou o Diabo com Lúcifer. Esta identificação se apóia numa sátira
contra o rei da Babilônia, que se encontra em Is 14, 4-23 (especialmente no versículo 12). Além
disso, a literatura apócrifa intertestamentária desenvolveu diversos elementos bíblicos que
desembocaram na história de que Satanás pertencia originalmente à corte celestial, onde liderou
uma rebelião de anjos contra Deus; por esse motivo, foi, juntamente com os anjos rebeldes,
castigado e lançado nas profundezas. As bases para esta narrativa se encontram no mesmo texto de
Isaías ( em especial Is 14,11-15), num lamento fúnebre contra o rei de Tiro, em Ez 28, 1-19 (em
especial versículos 16 e 17) e em Gn 6,1-4, em especial na parte que fala do matrimônio entre os
filhos de Deus com as filhas dos humanos e o resultado dessa união, os “gigantes”(v.2 e 4 ).
O texto de Is 14,12 transforma um antigo mito oriental num canto fúnebre irônico sobre o rei da
Babilônia. O poderoso rei é comparado, em sua glória, a um “astro brilhante”; e a sua morte à queda
deste astro sobre a terra: “Como caíste do céu, astro brilhante, filho da aurora? Como foste arrojado
por terra, tu que vencias as nações?” Não temos muitas informações sobre o mito que está à base do
texto bíblico. Ele talvez contivesse a história de um ser celestial ou humano que tentou ocupar
indevidamente um lugar no Olimpo dos deuses orientais ou cananeus, tendo sido, por isso, lançado
para fora do santo monte. A tradução de “astro brilhante” por “Lucifer” (“o portador da luz”) pela
versão latina (Vulgata) pretende dar um nome a este ser.
O texto de Ez 28 é bastante semelhante, pois parece apoiar-se no mesmo mito. As semelhanças
estendem-se a Gn 2-3, a vida dos primeiros seres humanos no jardim e sua expulsão do Éden.
Também Ez 28,11-19 é um lamento fúnebre, desta vez sobre o rei de Tiro. Como o primeiro ser
humano, o rei de Tiro foi criado perfeito e colocado, em meio a pedras preciosas, no jardim do
Éden, localizado no monte santo de Deus. As riquezas da cidade de Tiro, acumuladas através do
comércio, por extorsão e violência, são consideradas iniqüidade do rei (v.15-16). A beleza e o
esplendor do rei são ilícitos e podem ser comparados à arrogância do primeiro humano; eles são a
causa de sua expulsão da montanha sagrada pelo querubim, o guardião da montanha (v.16-17).
Como em Is 14,12, também aqui o tirano é lançado ao pó da terra, para espetáculo dos demais reis.
Ambos os textos proféticos usam um antigo mito, não por se interessarem por histórias de anjos
bons e maus, mas como metáfora do que irá acontecer a reis concretos e reais, que acumularam
riquezas e poder através de opressão e violência. O mito dá elementos para ilustrar a mensagem
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 11
profética. Nenhum dos textos menciona Satanás ou o Diabo ou outra personificação do mal. Os
livros apócrifos do judaísmo, em especial o Livro de Henoc/Enoque (século 2 a.C.) e a Vida de
Adão e Eva (após 70 d.C.), desenvolvem estes textos, com o recurso aos nefilim (“gigantes”ou
“caídos”) de Gn 6, 4, na direção da história da expulsão e queda dos anjos bons após uma rebelião
no céu, liderada por Satanás ou Lúcifer. O Antigo Testamento é bem mais sóbrio e recatado em
suas formulações sobre o que ocorre nas dimensões celestiais.
Conclusão
É difícil fazer uma sistematização do acima exposto. Também não podemos aprofundar o tema com
as novas perspectivas provenientes do Novo Testamento e da reflexão mantida na Igreja cristã.
Talvez possamos novamente acentuar o que é a visão típica do Antigo Testamento. Constatamos
que o Antigo Testamento é bastante sóbrio e recatado em sua “demonologia”. Não que o povo de
Israel não tivesse consciência das diversas facetas do mal que atacam e assolam as pessoas. Não que
o povo não tivesse tido experiências de como este mal pode ser muitos vezes extremamente
poderoso, assustador e inexplicável. Para tentar defini-lo e explicá-lo e, assim, de certa forma
controlá-lo, Israel lançava mão de nomes, termos e experiências provenientes do próprio meio ou,
então, do ambiente oriental mais amplo que o envolvia.
Mas Israel não só assumiu conceitos alheios, também refletiu o fenômeno da perspectiva de sua fé
monoteísta. Assim, na convicção de que não há poder superior ao Deus Javé, chega a afirmar que o
mal não pode provir de um poder paralelo a Deus, a fonte de todo bem. Afinal, tanto o bem quanto
o mal fazem parte de um mesmo mundo bastante humano. O Antigo Testamento sabe que os males
que existem no mundo estão aí por causa das fraquezas, limitações das pessoas, da soberba e do
egoísmo humanos. Mas este mundo e estes humanos pertencem a Deus - e somente a Ele - e por Ele
são amados. Não há, portanto, o que temer. Os poderes do mal nada podem para os que crêem na
fidelidade do Pai de Jesus Cristo.
Mas quando, em épocas mais recentes do Antigo Testamento, a mentalidade dualista tornou-se mais
presente na fé de Israel e, por motivos óbvios, havia escrúpulos em simplesmente atribuir a Javé a
origem do mal, já que Deus não quer nem visa o mal, buscou-se um personagem que pudesse
cumprir uma dupla função: a de evitar atribuir o mal a Javé e, ao mesmo tempo, de confirmar que
Deus continua no controle de toda a história. O conceito de conselho celestial e a vida judicial
fizeram surgir Satanás, um possível adversário ou acusador dos humanos, mas ao mesmo tempo um
servo de Deus, sem poder próprio.
Como vimos acima, também o Antigo Testamento não escapou da tentação de “demonizar” a
religião, as divindades e as crenças de outros povos. Aparentemente esta é uma tendência humana
presente em todas as culturas e religiões. É dessa tendência que surgem as discriminações e os
fanatismos que tanto queremos evitar.
Notas bibliográficas:
1) Para o que segue apoiei-me especialmente no verbete “Dämonen” no oitavo volume de
Theologische Realenzyklopädie e no segundo volume de Religion in Geschichte und
Gegenwart.
2) Kilpp, Nelson. “Zípora salva Moisés: Anotações sobre um texto estranho.”Estudos Teológicos
32, São Leopoldo, 1992, p.155-163.
Teologia do Antigo Testamento: Os poderes demoníacos no Antigo Testamento 12
3) Para os verbetes a seguir consultei, além de Dattler, Frederico. O mistério do Satanás: Diabo e
Inferno na Bíblia e na literatura universal. São Paulo, Paulinas, 1977; Freedman, David N. (ed.).
The Anchor Bible Dictionary. 6 volumes. New York etc., Doubleday, 1992, Theologische
Realenzyklopädie. Vol. 8. Berlin, De Gruyter, 1981, p.270-279, Botterweg, G.J. (Fabry, H.J.) &
Ringgren, H. (eds.). Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament. 8 volumes. Stuttgart,
Kohlhammer, 1973 a 1995, Hutter, M. & Görg, M. Verbete “Dämonen”. In: Religion in
Geschichte und Gegenwart. Vol.2. 4.ed. München, J.C.B.Mohr, 1999, p.534-536.

A prática da justiça


Disciplina: Teologia do Antigo Testamento
Prof. Dr. Nelson Kilpp
Quarto tema:
1.A prática da justiça
1.1. Introdução
Existe unanimidade em torno da idéia de que a prática da justiça é algo positivo, desejável e
necessário para construir um mundo melhor. Em todas as religiões e culturas há um enorme anseio
por justiça. Em diversos lugares, povos e grupos lutam por mais justiça. Também entre nós não é
diferente. Sempre de novo, constatamos que as relações pessoais, sociais e políticas, tanto nacionais
quanto internacionais, continuam extremamente injustas. Ficamos revoltados, por exemplo, quando
um jogador de futebol, uma atriz de cinema ou um alto executivo ganha mil vezes mais que o
salário de um cidadão comum; ficamos indignados quando pessoas são rejeitadas na entrevista de
emprego por não terem “boa aparência”, apesar de sua capacidade profissional; ficamos perplexos
quando os “espertos” da nação desviam para suas contas em paraísos fiscais milhões e milhões de
reais destinados à saúde pública ou à educação. As histórias de fraudes, ganhos ilícitos, corrupção
ativa e passiva, desvios e desmandos revelados praticamente não têm fim.
Se, por um lado, há um relativo consenso em torno da necessidade de justiça em todos os âmbitos
da vida humana, há, por outro lado, controvérsias em torno do que realmente é a justiça. Parece ser
um conceito um tanto vago e indefinido. Conforme a primeira acepção do dicionário de Houaiss,
justiça é “o que está em conformidade com o direito” ou as leis e normas vigentes de um país. Isto
sem dúvida está correto, mas é somente um aspecto do conceito: o aspecto institucional. Cada
Estado democrático tem um aparato jurídico para garantir o cumprimento das leis e punir os que
não as cumprem. Mas, poderíamos, por exemplo, perguntar se todas as leis de um Estado são, de
fato, “justas”! Se houver leis que privilegiam determinados grupos ou indivíduos de uma sociedade
essa “justiça-conformidade-com-a-lei” ainda seria justa? De fato, muito se ouve dizer, por exemplo,
que a impunidade constitui, no fundo, falta de justiça. Pois leis que deixam impunes pessoas que
causam morte, dor e sofrimento não podem, de acordo com o sentimento da maioria, ser leis
“justas”. A experiência também mostra que, muitas vezes, a justiça institucional dá mais valor à
forma - de como são encaminhados os processos, por exemplo, - do que ao conteúdo da ação. Um
criminoso de alta periculosidade pode, assim, em tese, ser solto por causa de um detalhe formal no
encaminhamento do processo. Por esses motivos, muitos afirmam que a justiça forense, ou seja, a
dos processos, advogados, juízes, etc. nem sempre é justa.
Justiça deve ser algo maior, mais abrangente do que a justiça forense e institucional. A segunda
explicação que o dicionário de Houaiss apresenta sob o verbete afirma que justiça é um “princípio
moral em nome do qual o direito deve ser respeitado”. O dicionário de Aurélio, por sua vez, adota a
definição do famoso orador romano Cícero quando afirma que justiça é a “virtude de dar a cada um
o que é seu”. Esta definição mais ampla e mais abstrata reflete a existência de um senso de eqüidade
que forma, em muitas culturas e religiões de todas as épocas, a base da legislação e do que se
considera conduta correta. Dentro dessa perspectiva, recorremos, como cristãos, ao que os textos
bíblicos nos dizem a respeito da justiça.
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 2
[Observação: Usa-se o sistema de numeração de capítulos e versículos adotado pelo original
hebraico. Quando a numeração das Bíblias em língua portuguesa editadas pela Sociedade Bíblica do
Brasil for diferente da do original hebraico, ela aparecerá em parênteses, respectivamente
colchetes.]
1.2. A justiça restabelece as relações entre pessoas
A justiça tem algo a ver com as relações que as pessoas constroem e mantêm entre si. Poder-se-ia
dizer que justiça é o estado de convivência harmoniosa entre pessoas de um determinado grupo
social, por exemplo, a família, ou entre pessoas em posições diferentes como, por exemplo, entre
um rei e seus súditos ou entre um patrão e seus empregados. Na família, a justiça pode ser sinônimo
de solidariedade, por exemplo, ao garantir que cada membro da família tenha plenos direitos e
deveres. Os catorze anos em que Jacó trabalhou para o seu sogro, Labão, não só merecem um
salário digno e justo, mas também representam a “justiça” devida à família de Labão (Gn 30.33), ou
seja, a sua participação no crescimento dos bens da família. Quando as relações harmoniosas são
desfeitas, deixa de haver justiça. Por outro lado, justas são as pessoas que tentam restabelecer a
situação de relações ordenadas e benéficas para as diversas partes envolvidas.
Numa relação entre desiguais, a justiça adquire a conotação de lealdade entre as partes. Certa vez,
quando o rei Saul perseguia Davi, seu genro e desafeto, este poupou a vida de seu sogro e rei. E, de
acordo com 1 Sm 26.23, isto foi considerado a atitude adequada de um súdito perante o rei ou de
um dependente diante de seu senhor. Esta lealdade de Davi o texto chama de “justiça”, porque está
de acordo com as relações de respeito estabelecidas e consideradas normais entre um superior e um
subalterno ou dependente. Aqui se evidencia que o termo depende muito do que se considera, em
determinada cultura, relação “normal” e “harmoniosa”.
A Bíblia nos ensina que quem atua em favor das relações harmoniosas benéficas na família, na
comunidade e na sociedade é considerado uma pessoa justa. O bem-estar coletivo é tido como mais
importante que o bem-estar individual. O bem-estar coletivo corre muitos riscos quando as pessoas
pensam somente em si. Os desejos e interesses do indivíduo devem, portanto, submeter-se aos
interesses comunitários. O Antigo Testamento menciona diversos fatores que podem levar à
desagregação das relações harmoniosas na família e na sociedade: a desonestidade no comércio (Dt
25.13-16), a ganância (Pv 10.2), a fraude (Pv 16.8), a mentira, em especial no tribunal (Pv 14.25),
homicídios (Is 1.21), a injúria, a usura e o suborno (Sl 15).
Vivemos numa época em que a realização do indivíduo parece ser o valor máximo. Nos tempos
bíblicos o grupo social no qual o indivíduo estava inserido e do qual dependia era, na maioria das
vezes, mais importante que o próprio indivíduo, pois proporcionava proteção, sobrevivência e
aconchego a cada membro do grupo social. A integridade do grupo social – a família, comunidade,
a aldeia – depende de uma rede de relações mais ou menos complexas, que devem ser respeitadas
para que haja realização individual. Romper essas redes redundaria em conflito e desintegração da
convivência harmônica. Justa era, portanto, a pessoa que promovia a convivência respeitosa,
restabelecia as relações rompidas ou agia de acordo com o que era considerado necessidade ou
interesse da coletividade. Talvez tenhamos que reaprender, após a exaltação da liberdade e
autonomia do indivíduo, que, sem a inserção num grupo social, não se pode viver plena e
dignamente.
1.3. O bem da comunidade beneficia a todos
A busca da felicidade do indivíduo e a promoção do bem-estar comum não precisam ser duas coisas
excludentes. Numa carta que Jeremias escreveu aos judaítas que haviam sido levados de Judá e
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 3
Jerusalém para o exílio na distante Babilônia, o profeta estimula os exilados a não desanimarem e
orarem pela paz da cidade onde se encontravam desterrados, “porque na sua paz vós tereis paz”. A
paz e o bem-estar de toda a cidade, portanto, se estenderão a todos os que dela fazem parte. Parece
que isso é considerado normal. A situação do coletivo determina a situação do indivíduo.
Isso se torna evidente na antiga sabedoria popular israelita, que crê que a atuação do indivíduo
coloca em movimento uma força que, mais cedo ou mais tarde, atingirá o próprio autor da ação. Se
uma pessoa faz algo prejudicial à comunidade, a médio e longo prazo, prejudicará também a si
mesma. O livro de Provérbios está cheio de exemplos: “Quem cava uma cova (para nela fazer cair
uma outra pessoa) nela cairá” (Pv 26.27). Ou seja, o mal que eu faço a um membro da comunidade
atinge toda a comunidade e, portanto, indiretamente também a mim, que faço parte dessa
comunidade. Nas palavras do livro de Provérbios: “Pela sua impiedade cai o perverso” (Pv 11.5).
Por outro lado, quem promove o bem da comunidade, realizando aquilo que se espera dele, por
exemplo, dizendo a verdade em juízo ou não usurpando o que não lhe é devido, fortalece a rede de
relações sociais harmoniosas e, assim, se beneficia, indiretamente, a si mesmo. Por sua conduta em
favor da coletividade (p.ex., Pv 11.23; 12.5,17,26), esta pessoa é designada “justa”. E esta sua
justiça será, mais cedo ou mais tarde, recompensada (p.ex. Pv 12.28;13.25). O Sl 1 expressa isso
utilizando a metáfora da árvore viçosa: o justo é “como árvore plantada junto à corrente de águas,
que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo que ele faz será bem
sucedido” (v.3).
Podemos entender perfeitamente que, em uma sociedade onde todos procuram enganar o outro e
sempre tirar vantagem dele, também os enganadores e aproveitadores, mais cedo ou mais tarde,
serão enganados e lesados. Em nosso país, instalou-se, por causa dessa ânsia de querer tirar
vantagem em tudo, um clima de desconfiança generalizada entre as pessoas – afinal podemos ser a
próxima vítima. Esse clima corrói os valores positivos de nossa sociedade e podem instabilizar, a
médio prazo, as nossas relações sociais. Cristãos e cristãs, no entanto, não podem deixar-se levar
por essa onda que ameaça destruir as relações de confiança, tão necessárias para uma vida digna e
realizada na família, no grupo de amigos e na sociedade. Chega a ser doentio quando pessoas não
mais conseguem andar despreocupadamente nas ruas, desconfiando de todos os transeuntes.
Devemos resistir a ver no outro um inimigo em potencial e tentar reconstruir relações de confiança
mútua. Esta seria a nossa prática da justiça.
1.4. A injustiça leva um povo à ruína
A prática da justiça tem uma dimensão política. É muita antiga a consciência de que um povo
floresce na justiça ou, então, rui por falta dela. A sabedoria popular afirma que “a justiça exalta as
nações” (Pv 14.34). Em todo o antigo Oriente e também no Antigo Testamento, a tarefa mais nobre
do supremo governante de uma nação era a de garantir a justiça entre os habitantes de seu reino (Sl
72.1-3). Os governantes que não conseguiam cumprir essa missão de garantir relações justas
colocavam em jogo o seu reino. Quando o famoso rei Davi começou a desleixar a administração da
justiça em Jerusalém, seu próprio filho Absalão se revoltou contra o pai e ganhou amplo apoio da
população indignada com a falta de justiça (2 Sm 15.1-6).
Os porta-vozes mais incisivos contra as injustiças dos governantes e da aristocracia foram, sem
dúvida, os profetas bíblicos. Elias enfrenta o rei Acabe e o acusa de assassinato e apropriação
indébita por ter permitido que condenassem à morte um inocente que não lhe quis ceder a sua vinha
(1 Rs 21). O profeta Amós aponta para o fato de que, por um lado agricultores endividados são
vendidos como escravos e, por outro, um grupo de pessoas vive à custa da exploração de outras
(Am 2.6-8; 4.1). Isaías denuncia aqueles que acumulam campos e casas, tornando-se os únicos
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 4
proprietários rurais e urbanos (Is 5.8). Jeremias critica o rei Jeoaquim por realizar reformas luxuosas
em seu palácio, mas não pagar em dia o salário dos trabalhadores, e reafirma que a mais nobre
função do governante é justamente “exercer o juízo e a justiça”, ou seja, “julgar a causa do aflito e
do necessitado” (Jr 22.13-19). O profeta Miquéias acusa a aristocracia governante de Judá e
Jerusalém de “arrancar a pele” e “esmiuçar os ossos” do povo (Mq 3.1-3), desdenhando
completamente a sua obrigação de zelar pela justiça: “Vós, chefes da casa de Israel, que abominais
o juízo e perverteis tudo que é direito, e edificais a Sião com sangue e Jerusalém com perversidade.
Os chefes dão as sentenças por suborno, os sacerdotes ensinam por interesse e os profetas
adivinham por dinheiro” (Mq 3.9-11).
Estas palavras duras e corajosas dos profetas bíblicos – e os exemplos poderiam ser multiplicados –
são, no entanto, apenas um lado da moeda. Elas vêm acompanhadas do que se chama de “anúncio
de juízo”, que nada mais é do que a visão profética das conseqüências dessas múltiplas formas de
injustiça tanto da classe governante quanto do povo. O profeta prenuncia geralmente a destruição do
sistema sociopolítico e religioso que causa a injustiça observada. Os profetas bíblicos sabiam que
injustiças graves e persistentes corroem, com o tempo, toda a organização social e política de um
país. E isso certamente não é algo que aconteceu somente no passado. Também hoje se percebe que,
em muitos casos, uma prática persistente e endêmica de injustiça pode, com o tempo, levar à
corrosão dos valores morais que garantem a igualdade entre as pessoas, o que, por sua vez,
geralmente resulta na imposição da lei do mais forte quando não na rebelião das massas dos que se
sentem oprimidos. Um Estado que não consegue promover a justiça social dificilmente será um
Estado onde haverá paz e bem-estar.
1.5. Confessamos que nosso Deus é justo
A nossa prática da justiça se fundamenta na certeza de que nosso Deus é justo. A justiça e o direito
são os sustentáculos do seu trono (Sl 89.15[14]), ou seja, as diretrizes que pautam o seu governo
(9.9[8]). A Deus apelam os que são acusados injustamente ou que, de alguma forma, são vítimas de
injustiça (35.23ss). Deus é chamado a interferir para corrigir relações injustas no âmbito
interpessoal, mas também no campo político. Neste caso, a interferência de Deus em favor da
salvação de seu povo é designada de “ato de justiça” (Jz 5.11; Is 42.6). A justiça de Deus
restabelece as relações de igualdade, termina com a opressão do povo e restitui os direitos das
pessoas legalmente frágeis. Justiça torna-se o cognome de Deus: “O Senhor, Justiça Nossa” (Jr
23.6).
A fé em um Deus justo tem, na Bíblia, uma dimensão punitiva e outra salvadora. São dois lados de
uma mesma moeda. Por um lado, existe a firme convicção de que, por ser justo, Deus não deixará
impunes aquelas pessoas que praticarem a maldade ou a injustiça (Êx 20.5). Os profetas bíblicos
estão convictos de que Deus não é um “velhinho bonzinho” que passa, displicentemente, a mão na
cabeça de opressores e maus. As pessoas más serão punidas por causa de sua maldade (Ez 18). Por
outro lado, no entanto, a justiça de Deus é experimentada como salvação da vida, auxílio na
tribulação ou restabelecimento da saúde (Sl 40.10s[9s]). Nestes casos, o Deus “justo” que vem em
socorro dos seus é o Deus que permanece fiel à sua promessa de não abandonar o povo.
A justiça humana deve corresponder, de certa forma, à justiça divina, resguardando-se obviamente
as devidas dimensões. Não nos podemos arrogar o direito de emitir um juízo definitivo sobre
aqueles que, a nosso ver, são maus. Mas podemos deixar que nossa prática espelhe a nossa fé num
Deus justo, que não permite exploração de pessoas, apropriação indevida, tratamento desumano ou
atentado contra a vida e a liberdade alheia, mas que, pelo contrário, ajuda, auxilia, vem ao encontro
dos necessitados e fracos. A nossa prática fala uma linguagem bem mais clara do que os nossos
discursos.
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 5
1.6. Cremos em um Deus misericordioso
As pessoas que crêem e confiam na justiça de Deus, na verdade, esperam por um Deus
misericordioso. Ainda que sejamos pecadores e pecadoras que, a rigor, não subsitiriam diante da
justiça de Deus, buscamos Deus na confiança de que sua misericórdia seja infinitamente maior do
que o seu zelo (Êx 20.5s). O salmista do Sl 51 confessa, contrito, os seus pecados, pede perdão e,
para tanto, apela para a misericórdia divina. Ao mesmo tempo, no entanto, não deixa de qualificar o
julgamento de Deus como sendo justo (51.6[4]). Justiça e misericórdia divinas se fundem
misteriosamente para aqueles que dependem de Deus para restabelecer a sua vida.
A justiça de Deus pode expressar-se, por incrível que pareça, como misericórdia. A parábola dos
trabalhadores na vinha, como se encontra narrada em Mt 20, é claro exemplo disso. Conta a
parábola que o proprietário de uma vinha contratou trabalhadores por um preço fixo para
trabalharem na sua vinha. Após os primeiros iniciarem o trabalho, o dono da vinha contratou, em
diferentes horas do dia, ainda outros trabalhadores, tendo os últimos iniciado a trabalhar apenas às
cinco horas da tarde. Para surpresa geral, o dono da vinha pagou a todos o mesmo salário, o que
fora combinado com os primeiros trabalhadores. Até podemos entender por que os que mais
trabalharam ficaram irritados com a decisão do patrão de pagar o mesmo a cada trabalhador
independentemente do tempo que trabalhou. De acordo com o critério do merecimento, a decisão
configura uma “injustiça” (v.13). Porém, Deus – simbolizado pelo proprietário – vê as coisas de
forma diferente: cada pessoa tem as mesmas necessidades diárias para poder sobreviver. Neste caso,
a justiça divina se expressa – ao contrário da justiça humana – na bondosa misericórdia de Deus.
A misericórdia é uma das qualidades mais marcantes de Deus também no Islã. Das 114 suras do
Corão, 113 iniciam com o mesmo intróito: “em nome de Deus, o misericordioso e compassivo”. Na
primeira sura, estes mesmos adjetivos aparecem como epítetos divinos, ao lado de “senhor dos
mundos” e “rei no dia do juízo”. Também no Islã, portanto, o Deus misericordioso e o juiz justo
podem encontrar-se lado a lado.
A prática humana da justiça pode evidenciar-se em atos de compaixão com os mais necessitados.
Eis por que, no judaísmo, os atos da bondade humana, em especial as ações beneficentes, são
chamados de “atos de justiça”. O nosso comportamento pode, assim, ser uma confissão autêntica ao
Deus misericordioso.
1.7. Jesus praticou e ensinou a justiça
Buscamos a justiça, porque Jesus a viveu e ensinou. Toda a atuação e pregação de Jesus se
encontram sob o signo da nova justiça. Esta nova justiça é a nova relação que Deus estabelece com
as pessoas através de Jesus: uma relação de misericórdia para com os pobres, as mulheres, as
pessoas excluídas e os pecadores. Essa nova relação se vê no publicano que, ao contrário do fariseu,
se humilha, reconhece seus pecados e se arrepende; do publicano se afirma que “desceu justificado
para sua casa” (Lc 18.14). O futuro reino de Deus, pregado e inaugurado por Jesus, se confunde
com a justiça divina: “Buscai, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça” (Mt 6.33).
Os discípulos são exortados a trilharem o caminho da justiça, pois é o caminho que corresponde ao
reino de Deus, é, por assim dizer, um reflexo do Reino. Assim como Jesus viveu essa justiça (Mt
3.15) e morreu como um justo em favor dos ímpios (Lc 23.47; 2 Co 5.21), ele quer que seus
discípulos a manifestem. Ao declarar “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (Mt
5.6), Jesus aponta para as dificuldades que a implantação do reino da justiça terá. A fome e a sede
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 6
remete a pessoas carentes, pobres e fracas, incapazes de impor a justiça pelo poder político ou
militar. Os que buscam a justiça terão que contar, pelo contrário, com a perseguição por parte dos
poderosos (Mt 5.10). Ainda assim, eles terão sucesso, pois a justiça corresponde ao Reino de Deus
pregado e vivido por Jesus.
O que Jesus entendia por praticar a justiça do Reino de Deus? No Sermão da Montanha, Jesus diz:
“Se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos
céus” (Mt 5.20). Agora, a “justiça” dos fariseus e escribas, com os quais o próprio Jesus se
encontra, muitas vezes, em conflito, se caracteriza por um rigorismo formal no cumprimento das
leis do Antigo Testamento e da tradição oral, tidos como expressão da vontade de Deus. Os fariseus
não eram pessoas desleixadas em sua vida; pelo contrário, tinham um zelo extremado em realizar o
que era considerado vontade de Deus. O problema aparentemente era que os fariseus e escribas não
perguntavam pelo sentido último das normas, de modo que não conseguiam diferenciar entre leis
mais importantes e menos importantes, tornando-se a sua “justiça” mero cumprimento formal do
que a lei exigia: “Ai de vós, fariseus e escribas, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do
endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a
misericórdia e a fé” (Mt 23.23).
A justiça dos discípulos deverá ser “melhor” que a dos fariseus. Isso não quer dizer que os cristãos
devem ser mais zelosos pelo cumprimento de todos os detalhes da lei transmitida nos Testamentos.
Provavelmente seria impossível superar o zelo e o cuidado que os fariseus tinham pela Lei. A nova
justiça dos seguidores de Cristo deve ser qualitativamente “maior” que a dos fariseus, pois terá
como fonte o amor. As palavras que seguem – normalmente chamadas de antíteses – são exemplos
claros dessa nova justiça. A exigênca do amor ao próximo é relativamente fácil de ser cumprida,
porém difícil é amar o inimigo e orar pelos que nos perseguem (Mt 5.43s); revidar na mesma moeda
(“olho por olho”) é raltivamente fácil, o difícil, no entanto, é oferecer também a outra face ao que
bate em nós (Mt 5.38s). Na raiz de cada exigência e norma está a vontade divina de que amemos as
outras pessoas e ajamos a partir desse amor.
1.8. Praticar a justiça é um ato de amor
A prática da justiça está no centro da ética cristã. Ela é uma confissão ao nosso Deus, que é justo e
misericordioso; ela é um sinal de que nos encontramos no seguimento de Jesus, que viveu e ensinou
a justiça a seus discípulos. Também vimos que à base da justiça se encontra o amor. Isso se
confirma quando invertemos a questão, ou seja, quando perguntamos de que maneira podemos amar
as pessoas em nossos dias? A resposta não é tão fácil; ela exige reflexão. Pois o amor não é apenas
um sentimento subjetivo e transitório. O amor também não é apenas uma forma social de as pessoas
satisfazerem suas necessidades e carências físicas, antropológicas e psicológicas. Amor tampouco
pode ser confundido com o apego às coisas e pessoas que prezo e que me são valiosas. Se é que é
possível definir o que se entende por amor na Bíblia, diria que é, acima de tudo, um comportamento
que busca a vida plena para as pessoas.
Esse amor pode ser traduzido de diversas formas. Um exemplo da história da conquista das
Américas. Em 1511, numa celebração de Advento em Santo Domingo, o frei Antônio de
Montesinos criticou a opressão espanhola sobre os indígenas, diante do próprio Diego Colón, filho
do famoso descobridor Cristóvão Colombo, da seguinte forma: “Com que direito e com que justiça
tendes em tão cruel e horrível servidão a esses índios? [...] Como os conservais tão oprimidos e
fatigados, sem dar-lhes de comer nem curá-los em suas enfermidades e que, por tão excessivos
trabalhos a eles impostos morrem, ou melhor, os matais, para sacar e adquirir ouro cada dia? [...]
Estes não são homens? Não têm almas? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos?”
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 7
O frei traduziu bem o mandamento do amor ao próximo para a sua época, alertando para o fato de
que ele é incompatível com a escravidão, a opressão e a injustiça. Dito de forma positiva, a justiça
do amor consiste, de acordo com a interpretação do frei, em aliviar as dores e a fadiga, dar de comer
e beber, curar as enfermidades, promover a sobrevivência e tratar todas as pessoas como seres
humanos dignos.
Também nós temos muitas oportunidades de traduzir o amor cristão em atos de justiça, ainda que
pequenos e sem fomentar a dependência assistencialista. Podemos, por exemplo, defender as
pessoas que geralmente são emudecidas. Podemos dar a um desempregado uma chance de trabalho
em nosso jardim contra pagamento justo. Podemos ajudar que pessoas saibam quais são os seus
direitos mais elementares e consigam buscá-los. Podemos participar de organizações que promovem
a defesa dos direitos humanos para grupos marginalizados e minoritários. A prática da justiça é
tarefa do Estado, que, contudo, exige a nossa participação. Afinal, o amor de Cristo nos constrange.
1.9. Praticar a justiça é um exercício de liberdade
No centro da teologia da Reforma está a descoberta de que as pessoas não têm condições de se
salvarem a si mesmas. Por suas próprias forças ou obras – ainda que sejam muitas boas obras de
justiça – elas nada alcançam em matéria de salvação eterna senão a consciência do fracasso. Em
outras palavras: nunca podemos ser suficientemente justos para alcançar salvação e vida eterna.
Esta nós adquirimos mediante a fé em Jesus Cristo. O apóstolo Paulo diz de si que “não tem justiça
própria, que procede da lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus,
mediada pela fé” (Fp 3.9). Ou seja, para Paulo, os atos de justiça praticados conforme a exigência
da lei (“justiça própria”), apesar de importantes como demonstração do amor, não podem salvar as
pessoas que os praticam. Em outra passagem, o apóstolo afirma que a justiça de Deus se manifestou
“mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os que crêem, [...] sendo justificados gratuitamente, por
sua graça, mediante a redenção que há em Jesus Cristo” (Rm 3.22,24).
O conceito de justificação pela graça é muito importante para a vida e o pensamento do apóstolo
Paulo, um fariseu zeloso e cumpridor da lei que se tornou apóstolo de Cristo. O reformador Martim
Lutero assume o conceito e entende que as pessoas são “declaradas” justas por Deus – mas não são
“tornadas” justas, como diria Agostinho, já que ainda continuam sendo pecadoras. De qualquer
forma, para as igrejas da Reforma, a justificação pela fé liberou uma energia muita grande, pois as
pessoas já não precisavam preocupar-se em como conquistar um “lugar no céu”, ficando livres para
ocupar-se com a construção de uma vida mais humana aqui na terra. As energias dispendidas para
alcançar a salvação eterna podiam ser canalizadas para os “atos de justiça” em favor do próximo.
A justificação por graça e fé, um dos pilares da confissão das igrejas da Reforma, não leva,
portanto, à passividade. Pelo contrário, ela liberta da preocupação egocêntrica em torno da minha
própria salvação eterna – que já recebemos na fé -, e estimula a que nos engajemos em favor da vida
de outros. A prática da justiça adquire, neste caso, uma nova dimensão: ela é expressão da liberdade
dos filhos de Deus que, na alegria da salvação, dedicam-se a viver o amor de Cristo.
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 8
1.10. Praticar a justiça é um gesto de esperança
Certa vez fui interpelado, após um culto dominical, por alguém que havia escutado atentamente à
minha prédica: “Pastor, faz dois mil anos que padres, pastores, pastoras e outros ministros,
ordenados ou não, pregam o amor de Cristo. Mas até agora, nada mudou no mundo! As coisas
continuam ruins como antes. Tem alguma coisa errada!” Esse ouvinte frustrado com a eficácia da
pregação cristã aborda um tema teológico de suma importância: Por que as pessoas que confessam
Cristo ainda não conseguiram “construir” o Reino de justiça e paz anunciado pelas testemunhas
bíblicas e pelo próprio Jesus? Onde está o problema?
Certamente o problema não está nem com Jesus nem com o testemunho bíblico, mas com a nossa
imperfeição e pecaminosidade. Vivemos o que podemos chamar de ambigüidade do reino de Deus.
De um lado, o reino de Deus já irrompeu com a vinda de Jesus. Mas ainda não se realizou por
completo. Continua sendo objeto de nossa esperança futura. Isso está ligado a outra constatação: o
reino de Deus não pode ser “construído” por nós, pessoas limitadas, frágeis e pecadoras. Mas o
reino tampouco é algo que Deus instala através de um milagre ou por um decreto, sem a nossa
participação. Ele quer que participemos colocando sinais que re-presentem - tornem presente – o
seu Reino.
Assim, profecias bíblicas como as do profeta Isaías ainda continuam abertas, pelo menos
parcialmente, para a concretização futura, “até que se derrame sobre nós o Espírito lá do alto; então,
o deserto se tornará em pomar, e o pomar será tido por bosque; o juízo habitará no deserto, e a
justiça morará no pomar. O efeito da justiça será paz, e o fruto da justiça, repouso e segurança, para
sempre” (Is 32.15-18). O anseio de todas as nações e povos por justiça e paz continua. Talvez já
tenhamos andado um bom trecho na direção indicada pelo profeta. Mas ainda há muito chão pela
frente. E certamente o Espírito lá do alto quer utilizar-nos para que participemos dessa caminhada
em direção ao anunciado reino de justiça e de paz. Todas as nossas pequenas ações em favor de
relações mais justas entre pessoas e grupos, todos os nossos gestos de reconciliação que
restabelecem a paz serão expressão dessa nossa esperança inabalável na vinda do Reino de Deus:
“Venha o teu Reino!”
1.11. Em busca de uma espiritualidade da justiça
O anseio por justiça transcende os limites confessionais, religiosos, étnicos e culturais. Por isso, a
prática da justiça tem, por natureza, uma dimensão universal, ecumênica e transcultural. Isso pode
favorecer uma cooperação entre pessoas de diversas denominações cristãs e até de diversas religiões
em movimentos de apoio à luta pelos direitos humanos de pessoas ou grupos oprimidos ou
excluídos. Pode também favorecer uma espiritualidade comum para a prática individual ou coletiva
da justiça. Um exemplo antigo pode servir de inspiração.
Conhecemos bem o texto de Mt 7.12: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim
fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os profetas.” Esta norma simples, concreta, fácil de
entender e memorizar, normalmente chamada de “regra de ouro”, é entendida pelo texto do
Evangelho como sendo, assim como o duplo mandamento do amor (Mt 22.40), a síntese dos
preceitos bíblicos. Quem segue essa norma cumpre os mandamentos de Deus. Poucos sabem que a
mesma norma não é exclusividade do Evangelho. Encontramo-la também em textos
deuterocanônicos (Tobias 4.15; Eclesiástico 31.15), anteriores a Jesus. Famosa tornou-se também a
resposta do rabino Hillel, um fariseu babilônico que viveu no início da era cristã, a um homem que
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 9
queria converter-se ao judaísmo, se o mestre pudesse ensinar-lhe toda a Lei enquanto o requerente
ficasse parado sobre um único pé: “O que te é odioso, não o faças a teu próximo. Esta é toda a Lei;
o resto é comentário. Vai e aprende isso!” (b.Shab. 31a). Jesus, de acordo com o evangelista,
concorda com o fariseu Hillel e a sua tradição.
Podemos ir ainda mais longe. Aparentemente a regra de ouro representava um princípio ético
popular bastante antigo. Ela era muito difundida entre os gregos e romanos. Já o historiador grego
Heródoto e o educador ateniense Isócrates, no quinto século antes de Cristo, bem como o filósofo
estóico romano Sêneca, no primeiro século depois de Cristo, conheciam a regra de ouro. Ela
representa, portanto, uma síntese do comportamento ético adotada por diversas religiões e culturas.
A sua aceitação universal tem diferentes causas, em especial duas: ela revela a sensibilidade de
quem se coloca na pele da outra pessoa, amiga ou não, próxima ou não, e expressa a consciência de
que somos todos iguais, tendo as mesmas necessidades e direitos. Esta regra pode ainda hoje ser
uma diretriz para a nossa prática da justiça e, ao mesmo tempo, marcar uma espiritualidade
ecumênica em constante busca por mais justiça e igualdade entre todas as pessoas da terra.
2. A sabedoria israelita
A sabedoria israelita está intimamente ligada ao conceito de justiça no Antigo Testamento. Mas o
tema merce um tratamento especial.
2.1.Abrangência e definição.
Na época do Antigo Testamento, a sabedoria (hokmá) era um fenômeno internacional bastante
difundido em todo o antigo Oriente Médio. Em Israel se conhece a sabedoria dos edomitas e dos
“filhos do Oriente”(1 Rs 5.10s = Almeida/SBB 1 Rs 4.30s; Jr 49.7;Ob 8); provérbios são atribuídos a
árabes (Pv30.1;31.1); Jó e seus amigos são estrangeiros (Jó 1.3;2.11). Conhecidos são os
ensinamentos de Amenemopê, do Egito, e de Ahicar, da Assíria, que têm grandes semelhanças com
a literatura sapiencial do Antigo Testamento. O povo de Israel participava deste fenômeno
internacional, mas tinha suas características próprias.
A sabedoria pode ser, a princípio, qualquer conhecimento prático – um saber fazer -, adquirido
através da experiência de vida e da observação da natureza e das relações humanas. Sábio é, p.ex., o
artífice que realiza seu ofício com habilidade (Êx 31.3ss). De modo mais amplo, a sabedoria pode ser
definida como a capacidade de entender o mundo e a existência e de enfrentar e solucionar os
problemas da vida. Assim, a sabedoria auxilia as pessoas a terem uma vida melhor e mais feliz. Em
geral, ela aborda assuntos que afetam o cotidiano, como o trabalho ou a família.
No Antigo Testamento, pertencem ao âmbito da sabedoria, em especial, os livros de Pv, Jó, Ec e os
salmos sapienciais (Sl 1; 19B; 112; 119; 127; 128 e outros), mas também a história de José (Gn 37-
50) e os livros deuterocanônicos Tobias, Eclesiástico e Sabedoria. De modo geral, o livro de Pv e a
narrativa de José contêm a literatura mais antiga e a visão tradicional da sabedoria, enquanto Jó e Ec
refletem um estágio mais avançado da reflexão sapiencial.
2.2. O lugar e a função da sabedoria.
A sabedoria recolhe as experiências de vida com o intuito de ensinar as novas gerações (Pv
1.8ss;2.1ss).Este ensino acontecia, na época do Antigo Testamento, provavelmente em dois lugares
distintos: na corte real e no âmbito da família. Há provérbios que pressupõem claramente um ensino
formal de jovens da nobreza israelita para desempenhar funções diplomáticas ou para serem
conselheiros do rei (Pv15.22;16.10,12-15;23.1-5). Estas “escolas” da corte estavam abertas a
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 10
influências estrangeiras, em especial egípcias, a partir de Salomão (Pv 22.17-23.11, p.ex., se inspira
na doutrina egípcia de Amenemope).
A maioria dos provérbios, no entanto, indica para o âmbito do ensino informal que ocorria no seio da
família: “Filho meu, não te esqueças não te esqueças dos meus ensinos” (Pv 3.1; cf.4.1;5.1 etc).
Além disso, a maioria dos provérbios provêm do ambiente rural (Pv 27.23-27) e espelham uma
sociedade mais ou menos igualitária, onde todos ainda possuem uma propriedade em que trabalham
e da qual vivem. O nível de vida é bastante modesto, mas há possibilidade de fartura (13.4;20.3) para
as pessoas trabalhadoras. Em Provérbios transparece, portanto, uma sociedade agrária que dá aos
seus membros condições iguais de sobrevivência e sucesso. É nesse contexto que se deve entender
provérbios como: “A mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enriquece” (10.4).
3. O princípio da retribuição
A sabedoria tradicional procura, através da observação, detectar leis ou normas invisíveis que
regem os fenômenos naturais e os relacionamentos humanos. Essas observações podem ser
condensadas em ditos breves, de fácil memorização, os provérbios (mashal). A sabedoria
acredita que essas normas ou leis espelham a vontade do Criador e que o conhecimento e a
observância delas pode evitar desgraças e levar ao sucesso e à felicidade. Quem viver de acordo
com esta ordem da criação é, portanto, uma pessoa simultaneamente “justa” (“piedosa”) e
“sábia”. Quem viver em desarmonia com a ordem da criação é, por outro lado, “ímpio”
(“perverso”) e “tolo” (“insensato”). Enquanto que os “justos” e “sábios” terão sucesso na vida,
os “ímpios” e os “tolos” fracassarão (cf., p.ex., Pv 10.6ss; 11.5ss; Sl 1).
Nessa visão dualista está ancorada a idéia da “retribuição”, evidente, p.ex., na metáfora de Pv 26.27:
“Quem abre uma cova, nela cairá.” Há uma relação de causa e conseqüência entre a ação praticada e
a sorte de quem a pratica. Ou seja, quem planeja o mal para uma outra pessoa coloca em movimento
uma força que, mais cedo ou mais tarde, recairá sobre si mesmo. Da mesma forma, quem faz o bem
será, mais cedo ou mais tarde, recompensado pelo que fez. Essa perspectiva perpassa todos os
Provérbios, grande parte dos salmos sapienciais, a moldura do livro de Jó (cap.1-2; 42.7ss), a história
de José, e, em grande parte, também a literatura deuterocanônica.
2.4. A crise da sabedoria
O livro de Eclesiastes e o cerne do livro de Jó, no entanto, espelham a consciência de uma realidade
que contradiz a afirmação da sabedoria: Os justos, que deveriam estar indo bem, passam mal, e os
ímpios, que deveriam estar pagando pelos seus males, obtêm sucesso. O tema do sofrimento do justo
é exemplarmente tratado no livro de Jó. O que, conforme a o princípio da sabedoria tradicional, não
deveria acontecer, acontece com Jó: uma pessoa íntegra e temente a Deus padece sofrimento. Os
amigos de Jó, arraigados nos conceitos da sabedoria tradicional, tentam convencer Jó de que o
sofrimento atual deve ser atribuído a uma falta no passado. Dessa forma, os amigos de Jó cometem o
erro de usar o “princípio da retribuição” como medida rígida para explicar a realidade existente (cf.
os discípulos de Jesus em Jo 9.2). Assim, o que tinha, no ensino, a função de incentivar à prática do
bem, se transformou em critério para julgar as pessoas.
O livro de Jó tenta responder de diversas maneiras à questão do sofrimento do justo. A moldura do
livro (caps. 1-2; 42), mais antiga, dá a entender que o sofrimento do justo quer, na verdade, “testar” a
autenticidade do “temor” do justo(1.9ss; 2.3ss). Jó resiste à prova (Jó 1.22; 2.10) e recebe em dobro
o que havia perdido (42.12ss). Assim, a moldura ainda se movimenta dentro dos moldes tradicionais
da sabedoria israelita. O cerne do livro, pelo contrário, apresenta um Jó rebelde e inconformado com
Deus; uma solução para entender o sofrimento do justo se vislumbra somente no encontro pessoal
com Deus (42.5).
Teologia do Antigo Testamento: A prática da justiça 11
Também para o autor de Eclesiastes, há “justos a quem toca a sorte de ímpios, e ímpios a quem toca
a sorte de justos” (Ec 8.14;9.2ss). Dúvidas e ceticismo marcam o livro: De que adianta trabalhar ou
ser sábio e justo, já que tudo tem o mesmo fim, a morte (3.20)? Diante disso, o autor de Ec não se
desespera, mas valoriza e se alegra com as pequenas dádivas do Deus da vida: a comida, a bebida, o
trabalho, a companhia (8.15; 3.12s). Tudo deve ser recebido das mãos de Deus (3.14), mesmo que
não entendamos o seu agir (3.11).
2.5. O temor do Senhor
Por diversas vezes, a sabedoria afirma que o “temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (1.7; 9.10;
Sl 111,10; Jó 28.28). Esta afirmação é especificamente israelita, mas se enquadra perfeitamente no
pensamento global da sabedoria. Pois, a vida do sábio consiste em entender e aceitar as normas que
vigoram no mundo criado por Deus; sujeitar-se a elas eqüivale a respeitar a vontade do Criador. O
“temor” do Senhor significa, portanto, conhecer as leis de Deus (Pv 1.29; 2.5) e viver de acordo com
elas (Pv 3.7;8.13; Jó 1.1). Uma característica fundamental do que teme a Deus é a humildade (Pv
15.33); o sábio se curva conscientemente diante da vontade divina e reconhecendo que todo o seu
fazer é inútil, se “o Senhor não edificar a casa”(Sl 127.1). Esta humildade pode aproximar-se, às
vezes, do conformismo, que aceita pacientemente tudo que acontece como vontade divina (Jó
1.21;2.10).
2.6. A dimensão ética da sabedoria
Mais marcante, no entanto, é que a sabedoria está impregnada de otimismo, pois acredita na
possibilidade de a ação humana boa vir em benefício de toda a sociedade e, assim, também do autor
da ação. Segundo a sabedoria, felicidade e sucesso são possíveis para os bons, pois as normas de
Deus são “justas”. O ensinamento desse ideal representa um estímulo ético de importância
substantiva para as gerações que são instruídas no conhecimento e recebem orientação para a vida.
Assim como as leis, também a sabedoria quer preservar uma sociedade harmoniosa, onde os bons
sejam naturalmente recompensados e os maus punidos.
A sabedoria tem, portanto, uma dimensão ética extremamente importante. O que se consegue
através do trabalho honesto é legítimo e bom. No entanto, a sabedoria não ignora que existe
riqueza ilícita (10.2; 20.21;13.11;15.16) e que o agricultor pobre está prestes a perder o seu
campo injustamente (13.23), que, portanto, a harmonia social está ameaçada. Diante dessa
ameaça, os Provérbios reagem com otimismo e confiança: “o pão da fraude”, aparentemente
doce, deixará a boca cheia de areia (20.17), a riqueza adquirida por “cobiça” (10.3;11.6),
“balanças falsas e pesos injustos” (11.1;20.23) ou suborno e falsos testemunhos nos
julgamentos (12.17;15.27;17.15,23 etc.) se perderá por ser contrária às justas normas da
criação (22.16). Apesar de tudo, a sabedoria não desiste de crer que os “ímpios” serão
derrubados e os “justos” viverão (Pv 12.7). Isso não significa que a sabedoria leva ao
conformismo ético. Pelo contrário, a partir da teologia da criação, há um ideal a ser
preservado: “Oprimir o fraco é ultrajar o Criador; honrá-lo é ter piedade do indigente”
(14.31;17.5). Mesmo que ambos, pobre e rico, sejam criados por Deus (Pv 22.2), “quem faz
caridade ao pobre, empresta a Deus” (19.17).

O culto israelita e festas judaicas


Disciplina: Teologia do Antigo Testamento
Prof. Dr. Nelson Kilpp
Terceiro tema:
O culto israelita
1. Festas judaicas
1. 1 O calendário israelita e judaico.
O antigo Israel conhecia um ano lunar de 12 meses (com 29 ou 30 dias) ou 354 dias. A cada dois ou
três anos o ano lunar tinha que ser adaptado ao ano solar, tornando-se necessário incluir um mês
adicional no final do ano. O ano cultual em Israel iniciava na primavera (do hemisfério norte). O
primeiro mês ia, portanto, de meados de março a meados de abril aproximadamente. Cada mês
iniciava com a lua nova; por isso, o início do mês e, em decorrência também o início do ano, não
caía sempre no mesmo dia do ano solar. O primeiro mês do ano cultual era chamado de Abibe
("espigas"), também conhecido pelo nome babilônico Nisã. Além desse ano cultual havia, em
Israel, o ano civil, que iniciava com o sétimo mês, Tishri (meados de setembro a meados de
outubro, início do outono no hemisfério norte; assim ainda é hoje).
Em 13 de setembro de 2007 iniciou o ano judaico 5768; e em 30 de setembro de 2008 iniciará o ano
5769 (contam-se os anos a partir da suposta data da criação do mundo).
1.2. As três grandes festas de peregrinação em Israel
Os mais antigos calendários de festas encontram-se em
Êxodo 23.14-17 (dentro do Código da Aliança)
Êxodo 34.18 e 22s. (dentro do Decálogo Cultual)
Deuteronômio 16. 1-17 (dentro da Lei Deuteronômica, mais recente)
Levíticos 23 e Números 18 são ainda mais recentes, pois já contêm datas exatas das festas
que, em textos mais antigos, ainda eram vagas.
Os textos mais antigos mencionam três festas agrárias, por ocasião das quais se peregrinava ao
santuário. Em ordem cronológica são:
1) a festa dos ázimos, no início da colheita do cereal (cevada), na primavera, no início do ano
cultual;
2) a festa das semanas, no fim da colheita dos cereais (também chamada de sega, ceifa, messe);
contam-se sete semanas (50 dias = “pentecostes”) da festa dos ázimos ou do início da colheita;
3) a festa das tendas ou tabernáculos, no fim da colheita das frutas, no outono, no início do ano
civil.
Teologia do Antigo Testamento: O culto israelita 2
1.2.1. Os ázimos (matsôt) e a Páscoa (péssah)
As três festas mencionadas acima respeitam o ciclo de produção agrícola. Os calendários de festas
em Ex 23 e 34 ainda não mencionam a Páscoa, que é uma festa pastoril. Somente Dt 16 (um texto
um pouco mais recente) vincula a Páscoa com a festa dos ázimos, provavelmente por ambas caírem
no início da primavera (do hemisfério norte) e no mesmo mês (Abibe).
A festa dos ázimos era um ritual no início da colheita da cevada: o primeiro corte do cereal (Dt
16.9) era consumido sem levedura (cf. Josué 5.11: os grãos eram, no princípio, aparentemente
tostados). O povo se reunia, no início, em diversos santuários locais, para onde podiam deslocar-se
com facilidade, sem pôr em risco a colheita. Mais tarde, por ocasião da centralização do culto sob
Josias (622), os ázimos tornaram-se uma festa de peregrinação ao santuário central (Jerusalém).
O sentido mais antigo dos pães asmos/ázimos talvez tenha sido o tabu de não misturar o produto
novo, recém colhido, com o pão velho (= o levedo) de colheitas anteriores. O velho profana o novo
(não se põe vinho novo em odres velhos!). Ao serem incorporados na tradição do êxodo, os pães
asmos receberam novo significado: na pressa da fuga do Egito, não havia tempo para que a massa
pudesse fermentar.
À festa dos pães ázimos foi vinculada o ritual da Páscoa, como mostra o Deuteronômio. A Páscoa
tornou-se, com o decorrer do tempo, a festa mais importante do judaísmo (já na época do Novo
Testamento). A Páscoa é, na origem, uma festa de pastores de gado de pequeno porte (ovelhas e
cabras); os pastores sacrificavam um animal do seu rebanho quando partiam para lugares
desconhecidos à busca de novos pastos. Era um sacrifício que tencionava proteger os animais e as
pessoas dos males que pudessem encontrar pelo caminho e nos lugares desconhecidos. Essa antiga
festa pastoril foi vinculada com o evento mais importante da história de Israel: o êxodo do Egito, a
libertação da escravidão. Em Ex 12,21-23.29ss, encontramos a tradição mais antiga sobre a Páscoa
(trechos mais recentes estão em Ex 12. 1-20,28 e Ex 12. 24-27). No trecho mais antigo, a Páscoa já
está vinculada com a história da morte dos primogênitos do Egito. Um animal pequeno (ovelha,
cabrito) é sacrificado; sua carne é consumida pelos participantes e seu sangue é espargido nas
ombreiras e na verga das casas, para que o "destruidor" não faça nenhum mal à família. O termo
Páscoa foi interpretado como "passagem ou travessia", lembrando que “o destruidor” "passa" pelas
casas dos israelitas, poupando-as, assim, da desgraça.
Dt 16,2.5s pressupõe que a Páscoa seja festejada no templo de Jerusalém. Antes da centralização do
culto (622 a.C.) e após a destruição do templo, era uma festa celebrada no âmbito da família e
continua sendo até hoje. A ceia da Páscoa se chama "seder". Acredita-se que a última ceia de Jesus
tenha sido a celebração de um "seder". Jesus foi crucificado na sexta-feira antes da Páscoa judaica e
ressuscitou no primeiro dia da semana. Os cristãos celebram a Páscoa no dia da ressurreição de
Jesus, pois este acontecimento representa, para os cristãos, como o êxodo do Egito para os judeus, a
passagem da morte para a vida.
No judaísmo, a Páscoa é festejada no 14o dia do mês Nisã e marca o início da semana dos ázimos,
quando durante sete dias só se come pão sem fermento, lembrando a época da saída do Egito. Os
pães são comidos com ervas amargas, lembrando a amargura da escravidão. Em 2008, a Páscoa foi
celebrada de 20 a 27 de abril.
1.2.2. A festa das semanas (shabuôt)
Ao término da colheita dos cereais, o povo levava as "primícias (= primeiros frutos) dos produtos da
sementeira do campo" (feixes de cereais e pão) ao santuário (Ex 23.16; Lv 23.17). O dia é também
conhecido como dia das primícias (Nm 28.26). É uma festa da colheita como as que existem em
diversas comunidades do interior do RS e SC. A festa ganhou o nome de "festa das semanas" por
causa da contagem de sete semanas a partir do início da colheita dos cereais (Dt 16.9s.).
Teologia do Antigo Testamento: O culto israelita 3
Originalmente era um agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Devolve-se a Deus parte do que
ele deu.
Junto com essa festa, celebra-se, hoje, no judaísmo, também o recebimento da Torá, a lei de Deus
dada a Moisés no monte Sinai. No cristianismo a festa preservou-se sob o nome de Pentecostes; ela
lembra a vinda do Espírito Santo e o início da Igreja cristã. Em 2008, os judeus celebraram a festa
de shabuôt em 9 e 10 de junho.
1.2.3 A festa dos tabernáculos (tendas; succot)
É a festa da colheita das frutas. No outono, colhiam-se, em Israel, entre outros, figos, tâmaras,
azeitonas e uvas. As primícias do vinho e do azeite (o produto da "eira e do lagar"; Dt 16.13) são
ofertados. Era costume, durante a colheita, morar em choças de palha, daí a tradição de construir
"tendas" por ocasião da festa. As tendas também querem lembrar a estada do povo no deserto após
o êxodo do Egito (Lv 23.42s). A festa é celebrada no sétimo mês, Tishri, durante sete dias (do 15o
ao 21o dia do mês). É a festa mais alegre do povo de Israel; costumava-se dançar nas vinhas (Jz
21.19ss). Em 2008, a festa de succot se realiza de 14 a 20 de outubro.
1.3. Outras festas
Na época pós-exílica juntou-se às três festas de peregrinação já existentes uma série de outras festas
e datas memoriais.
1.3.1. O ano novo (rosh hashana)
O ano novo é festejado no início do ano civil israelita, ou seja, no primeiro dia do sétimo mês,
Tishri (Nm 29.1; Lv 23.24s). Em 2008, o ano novo judaico cairá no dia 30 de setembro, quando
iniciará o ano de 5769.
No ano novo inicia um período de arrependimento de 10 dias que culmina no Dia do Perdão (yom
hakippur), a ser lembrado, em 2008, no dia 9 de outubro.
1.3.2. O dia do perdão ou da expiação (yom hakippur)
No 10o dia do mês Tishri (meados de setembro a meados de outubro) celebra-se o dia nacional do
perdão, quando são purificados o templo e o povo, conforme o ritual de Lv 16. De dois bodes um é
sacrificado a Deus e outro é enviado para o deserto. O bode leva os pecados do povo e é, por isso,
chamado de "bode expiatório". Hoje, os judeus respeitam um jejum de 24 horas. Em 2008, o dia do
perdão cairá em 9 de outubro.
Os cristãos entendem que Jesus é o "cordeiro de Deus" que morreu "por nossos pecados", trazendo
o perdão de Deus a todos os que nele crêem.
1.3.3. O dia da alegria da Lei (simhat hatorá)
É um dia festivo de muita alegria. Os rolos da Torá (Lei) são retirados das arcas, nas sinagogas, e
carregados em procissão pelos fiéis em meio a cantos. Em 2008, a festa cairá no dia 22 de outubro.
1.3.4. Festa da dedicação do templo (hanucá)
Esta festa lembra a rededicação do templo de Jerusalém, que aconteceu em 164 a.C., por Judas
Macabeu, após uma sangrenta rebelião contra os exércitos gregos de Antíoco IV Epífanes que, em
Teologia do Antigo Testamento: O culto israelita 4
167 a.C., havia profanado o templo de Jerusalém (cf. 1 Macabeus 4.36ss.; 2 Macabeus 1s.; João
10.22). Em 2008, a data será lembrada nos dias 22 a 29 de dezembro.
1.3.5. A festa de Purim.
Esta festa nasceu entre os judeus da dispersão (diáspora), provavelmente na Babilônia. A história da
origem da festa está narrada no livro de Ester (especialmente Et 9.16ss.). Com muitos presentes os
judeus lembram que foram preservados da perseguição. Em 2008, a festa caiu no dia 21 de março.
2. O sábado
O sábado não é nenhuma festa, mas pode ser considerado, como as festas, um "tempo santo". O
sábado é um dia de descanso. O próprio termo “sábado” (shabat) significa, em hebraico, “parar (de
trabalhar), descansar”. O mandamento do descanso no sábado é uma das estipulações mais
freqüentes do Antigo Testamento, o que atesta a sua importância.
2.1 O sábado no Antigo Testamento e no judaísmo
Não existe consenso quanto à origem do sábado. A semelhança com o 15º dia do mês babilônico, o
dia de lua cheia, designado shapatu, é meramente terminológica, pois o referido dia não é dia de
descanso. Um período de sete dias também se conhece na Assíria, onde os 7º, 14º, 21º e 28º dias do
mês eram considerados de mau agouro, de modo que se evitava realizar certas atividades. Mas
também estes não eram, na verdade, dias de descanso. Apesar de o sábado ser mencionado, em
alguns textos pré-exílicos, junto com a festa da lua nova (Am 8.5; Os 2.13 e outros), não se pode
afirmar com certeza que, na origem, o sábado tenha algo a ver com o ciclo lunar. O ciclo de sete
dias pode também ter surgido da idéia de perfeição e santidade, inerente ao número sete. Em todo
caso, um ciclo de seis dias de trabalho alternados com um de descanso, na Antigüidade, só se
conhece em Israel.
A forma mais breve do mandamento do sábado, Êx 34.21, talvez seja a mais antiga: “Seis dias
trabalharás, mas no sétimo descansarás, quer na aradura quer na colheita.” Esta prescrição já
espelha a dificuldade de observar o descanso em certas épocas do ano. No Decálogo, o
mandamento do descanso é um dos mais longos, o que mostra a sua importância, mas também a
necessidade de haver estímulos à sua observância. Êx 20.8-11 fundamenta o descanso sabático no
fato de Deus ter abençoado e santificado o sétimo dia, no qual ele próprio descansou após concluir a
criação. Assim, ao descansar no sábado, os israelitas se alegram com as obras da criação e
participam da bênção que emana desse dia. A versão de Dt 5.12-15, por outro lado, traz uma
motivação humanitária e social para o descanso no sábado: os membros da família, os servos e até
os animais necessitam de descanso. Com a observância do descanso semanal, Israel evita retornar
aos tempos de escravidão no Egito (cf. Êx 23.12).
Apesar de o sábado ser mais antigo, ele teve importância especial no exílio babilônico (séc.VI a.
C.). Aí se torna um símbolo da identidade do povo de Israel. Ele é sinal da aliança com Deus (Ez
20.12). Com o passar do tempo, as prescrições sobre o descanso tornam-se mais detalhadas e
rígidas, como, p.ex., as proibições de acender fogo (Êx 35.3), carregar fardos (Jr 17.21s) ou
transportar mercadorias (Ne 10.32). Quem não observa o sábado é digno de morte (Êx 31.14; Nm
15.32ss). Durante a revolta dos Macabeus, um grupo de israelitas fervorosos preferiu deixar-se
matar pelo inimigo a pegar em armas em dia de sábado (1 Mac 2.32-38). Na Mishná, o tratado
Shabat arrola 39 atividades proibidas no sábado.
Teologia do Antigo Testamento: O culto israelita 5
2.2 O sábado no Novo Testamento e nas comunidades cristãs
Como qualquer judeu, Jesus certamente observou, em termos gerais, o sábado. Ao mesmo tempo,
no entanto, ele foi extremamente crítico ao sábado. Conhecida é a palavra de Mc 2.27: “O sábado
foi feito para o ser humano, e não o ser humano para o sábado.” Com isso, Jesus afirma que a
preservação da vida está acima das exigências formais da Lei; a vontade de Deus, à base de toda
Lei, é de promover a vida. Jesus cura aos sábados, demonstrando, assim, inusitada liberdade diante
do cumprimento formal da Lei, defendido por uma corrente do judaísmo da época. Esta postura de
Jesus certamente influenciou seus seguidores e as comunidades cristãs. O apóstolo Paulo coloca a
liberdade da Lei no centro de sua teologia, considerando a observância de determinados dias um
retrocesso (Gl 4.10; Gl 5). As suas visitas às sinagogas judaicas faziam parte de sua estratégia
missionária (At 13,14s).
A comunidade cristã de Jerusalém participava, inicialmente, do culto no templo (At 5.42;21.26);
muitos cristãos não viam necessidade de se desligar dos costumes herdados do judaísmo,
observando também o sábado (Mt 24.20) e pagando o imposto do templo (Mt 17.24-27). Os
conflitos em torno da observância da Lei judaica, que transparecem, p.ex., em At 15 e Gl 2, não
mencionam o sábado, mas refletem a existência de diversas posições diante dos costumes do povo
judeu. As comunidades gentílico-cristãs, em concordância com a teologia paulina, certamente não
observavam o sábado, enquanto que cristãos oriundos do judaísmo e grupos dentro do cristianismo,
como os ebionitas, mantiveram, por muito tempo, o sábado.
2.3 O domingo
Na origem, o domingo (do latim [dies] dominicus, “dia do Senhor”; cf. Ap 1.10) nada tem a ver com
o sábado, ou seja, não surgiu para substituí-lo como dia de descanso. Por ser o dia da ressurreição de
Jesus e de suas aparições aos discípulos (Jo 20.1,19,26), o primeiro dia da semana judaica tornou-se,
cedo, um dia especial, no qual as comunidades cristãs se reuniam para ouvir a pregação do
Evangelho, celebrar a Ceia do Senhor (At 20.7,11) e recolher as ofertas para os necessitados (1 Co
16.2). No início, os cristãos e as cristãs não descansavam do trabalho neste dia. Documentos do séc.
II mencionam reuniões de alegria, no dia da ressurreição de Jesus (Carta de Barnabé), e encontros
para a leitura dos profetas e apóstolos, orações e celebrações da Ceia, no primeiro dia da semana
(Justino, o Mártir).
Somente em 321, o imperador Constantino instituiu o primeiro dia da semana judaica (dedicado,
entre os romanos, à divindade solar) como dia de descanso geral, no qual não se faria nenhum
trabalho (a não ser na lavoura) e nenhum negócio (a não ser a libertação de escravos). Esta
determinação trouxe benefícios para os cristãos, mas também veio ao encontro dos adeptos do culto
solar e de outras religiões do Império Romano. Mesmo assim, em muitos lugares, inclusive nos
mosteiros, o trabalho não parava aos domingos; o mandamento bíblico do descanso semanal era,
muitas vezes, interpretado alegoricamente (à semelhança de Hb 4.1-11). Somente a partir do séc.IV,
conhecem-se apelos para que se cumpra o descanso dominical, usando-se as motivações do sábado
bíblico (João Crisóstomo). Já na Idade Média, há um conjunto de normas que regulamentam o
descanso dominical.
Os reformadores destacam-se por sua atitude relativamente liberal diante das prescrições do
descanso dominical. Calvino exige que se reserve um dia por semana para o culto e o descanso dos
servos, não necessariamente um dia específico. Para Zwínglio, é possível, no dia de descanso,
realizar serviços considerados necessários. Lutero se posiciona contra as proibições rígidas da sua
época e se manifesta contra tendências de reintroduzir o sábado, argumentando que as normas da
antiga aliança não mais são válidas. Mas também destaca a necessidade de um dia especial para as
reuniões da comunidade. Na Inglaterra do séc. XVII, os Puritanos exigem não só a proibição de
Teologia do Antigo Testamento: O culto israelita 6
todo trabalho no domingo, mas também de qualquer evento esportivo, recreativo ou artístico (bailes
ou teatro). O Parlamento inglês chegou a aprovar leis proibindo hotéis de receberem viajantes e
restaurantes de servirem refeições aos domingos.
2.4.O dia de descanso na atualidade
O mundo ocidental adotou, em termos gerais, a prescrição do Antigo Testamento de alternar
seis dias de trabalho com um de descanso. Por causa da predominância de cristãos nos países do
Ocidente, prevê-se como dia de descanso normalmente o domingo, enquanto países muçulmanos
estabelecem a sexta-feira. No Brasil, o descanso semanal deve coincidir preferencialmente com o
domingo (Art. 7º XV da Constituição Federal de 1988). A Consolidação das Leis do Trabalho –
CLT, de 1943, já prescreve esta norma, mas também prevê exceções: “O descanso semanal será de
24 horas consecutivas e coincidirá no todo ou em parte com o domingo, salvo motivo de
conveniência pública ou necessidade imperiosa de serviço [...] Havendo trabalho nos domingos,
será organizada uma escala de revezamento quinzenal, que favoreça o repouso dominical.” (Art.
385 e 386) A Lei n. 605 (de 5/1/1949) e sua Regulamentação (Decreto n.27.048, de 12/8/1949)
dispõem sobre o repouso semanal, mas relacionam, ao mesmo tempo, pessoas e setores da
economia aos quais a Lei não se aplica.
A legislação reflete os problemas vinculados ao dia de descanso semanal. Há atividades que
não podem parar nem mesmo no dia de descanso. Existe, além disso, toda uma indústria voltada à
organização do lazer. Portanto, não mais é possível manter um mesmo dia de descanso para todas as
pessoas; isso prejudica a vida da família e da comunidade cristã. O encontro da comunidade tornase
cada vez mais difícil.
Por outro lado, a redução de horas de trabalho semanais fez surgir, para muitos, o “fim de
semana” livre. A discussão sobre se o sábado ou o domingo deveria ser o dia de descanso deixa de
ser importante. Com o advento do fim de semana como tempo de lazer, a questão mais importante
das Igrejas gira em torno do conteúdo cristão que deve ser dado a este tempo de lazer. Por um lado,
o lazer é importante por representar um espaço de criatividade e realização humanas, a princípio,
livre da pretensão de hegemonia do poder econômico (mesmo que muitas pessoas tenham que
trabalhar nos dias destinados ao descanso para reforçar o orçamento). O tempo livre da necessidade
de produzir é uma intenção básica do sábado judaico e deve ser valorizado. Por outro lado, a mera
existência do tempo de lazer ainda não é observância cristã do dia de descanso, pois faltaria a
dimensão da santificação. Cabe resgatar os conteúdos positivos do Evangelho para o dia de
descanso: este é dia de alegria e de festa, de comunhão e solidariedade. Ele está aí para colocar cada
semana na perspectiva da nova criação, antecipando, de certo modo, a festa da vida eterna.
Teologia do Antigo Testamento: O culto israelita 7
O ano de descanso
Em analogia ao dia de descanso, Israel também conhece um ano de descanso: Seis anos a terra é
cultivada, no sétimo ano ela tem o direito de descansar, ou seja, de não ser cultivada (poisio da
terra). Nesse ano, os pobres têm o direito de comer o que nela encontrarem (Ex 23.10s). A lei tem,
portanto, também um cunho social.
Em Levítico 25, o ano de descanso da terra está vinculado ao ano do jubileu: a cada 50 anos será
tocada uma trombeta para anunciar a libertação dos escravos e presos (Lv 25.10). Além disso, as
propriedades imóveis que seus proprietários tiveram que vender (por necessidade) serão restituídas
aos antigos donos.
3. Sacrifício
Elemento importante do culto israelita é o sacrifício. O sacrifício é, na origem, o ato de
separar ou consagrar algo a uma divindade ou, então, a própria oferta dedicada à divindade.
Sacrifícios existem em quase todas as religiões e culturas e constituem um meio muito
difundido de expressar a relação entre humanos e Deus.
O Antigo Testamento conhece três sentidos básicos do sacrifício: agradecimento, comunhão e
expiação. Como oferta de agradecimento a Deus, o sacrifício era, muitas vezes, entendido como
devolução de parte do que Deus concedera aos humanos através da fertilidade dos campos e
rebanhos. Em Gn 4, Caim e Abel trazem cada um do fruto de seu trabalho como oferenda de
gratidão a Deus. O termo aqui utilizado (minha), geralmente traduzido por “oblação” ou “oferta (de
manjares)”, designa sacrifícios totalmente queimados no altar, tanto vegetais quanto animais. Em
épocas posteriores, o termo minha foi reservado para as oferendas vegetais: farinha, pães, azeite,
incenso ou libações (Lv 6.7ss.= Almeida/SBB Lv 6.14ss.). Para designar o sacrifício animal
queimado totalmente no altar (com exceção da pele, que cabia ao sacerdote) utiliza-se, em geral, o
termo ‘olah, normalmente traduzido por “holocausto” (p.ex. Gn 8.20; 22.7; Lv 1.3). Um terceiro
termo é usado quando alguém, após experimentar o auxílio divino, oferece um sacrifício de
gratidão, juntamente com seu louvor, no santuário, onde testemunha diante da comunidade a
salvação experimentada. Neste caso, o próprio sacrifício é chamado de “ação de graças” (todah: 2
Cr 29.31; Am 4.5; cf. Lv 22.29). Na época pós-exílica, o holocausto é o tipo de sacrifício mais
difundido no judaísmo.
Embora esses sacrifícios queiram ser oferta de agradecimento, eles ainda podem ocultar a antiga
noção de que os deuses consumiam as oferendas. Esta noção se evidencia em textos que consideram
o sacrifício como alimento de Deus (Jz 13.16; Sl 50.12s.; Ez 44.7) ou “aroma agradável” a Deus
(Gn 8.21; Lv 6.8). Também os “pães da proposição ou oblação” dispostos à entrada do santo dos
santos (Êx 25.30) refletem esta antiga idéia de que a divindade precisa alimentar-se. É possível que,
em determinados casos, o sacrifício também era entendido como tentativa de agradar a Deus ou de
motivá-lo a continuar concedendo a bênção da fertilidade ou, então, até de aplacar a sua ira (cf. Ef
5.2).
Um sentido bem diferente está vinculado ao termo zebah, normalmente vertido simplesmente por
“sacrifício”. Neste caso, somente as partes nobres, ou seja, a gordura, os rins e o fígado eram
queimados no altar, sendo o sangue derramado ao pé do mesmo. A maior parte da vítima era
consumida pelos celebrantes (Êx 12.3s.;34.15; 1 Sm 1.4; Lv 3). Este sacrifício tinha a função de
criar ou confirmar, em lugar santo, a comunhão com Deus e entre os comensais, geralmente a
Teologia do Antigo Testamento: O culto israelita 8
família ampliada (1 Sm 20.6; mas cf. a “refeição sagrada” em Êx 24.11). Este tipo de sacrifício,
talvez o mais difundido na época pré-exílica, era normalmente realizado pelo pai de família, sem
necessidade de sacerdote. Os motivos eram a festa anual do clã ou um importante acontecimento
público, geralmente festivo e alegre, mas também a ação de graças. Os animais primogênitos, p.ex.,
eram sacrificados como zebah (Dt 15.19ss.). Devido à sua função de promover comunhão, estes
sacrifícios são chamados também de “sacrifícios de comunhão” ou “sacrifícios pacíficos” ([zebah]
shelamim; Lv 3; 1 Sm 9.13). Afirma-se que todo abate normal de um animal já era um sacrifício
(“sacrifício de abate”), pois envolvia derramamento de sangue.
Com o decorrer do tempo, os sacrifícios de comunhão foram regredindo em Israel, dando lugar aos
holocaustos. Na época pós-exílica, um terceiro tipo de sacrifício ganha importância cada vez maior:
os sacrifícios de expiação pelo pecado. Com o surgimento de normas de pureza e impureza cada vez
mais detalhadas, crescem as possibilidades de incorrer em erro e, por conseguinte, a necessidade de
purificação e perdão. Lv 4s. trazem exemplos de sacrifícios por pecados involuntários ou
inconscientes. Mais conhecido é o sacrifício expiatório no grande dia do perdão (Lv 16), no qual um
bode é sacrificado a Deus e outro enviado ao deserto. Em épocas recentes, holocaustos eram
oferecidos diariamente no templo de Jerusalém, pela manhã e à tarde (tamid: Lv 6; Nm 28; Dn
8.11,13).
Inicialmente sacrifícios podiam ser oferecidos por qualquer pessoa e em qualquer lugar. Nos
começos de Israel, havia muitos altares e diversos santuários locais e regionais. Nos santuários
maiores e nos templos, os sacerdotes tornaram-se os intermediários entre as pessoas e Deus. Com a
reforma político-religiosa do rei Josias, em 622 a.C., ocorreu a centralização de todo o culto
sacrificial no templo de Jerusalém. Isso teve conseqüências marcantes para a religião de Israel.
Surgem, na época do segundo templo e de Jesus Cristo (515 a.C. até 70 d.C.), as peregrinações
anuais de judeus da dispersão para o templo de Jerusalém, por ocasião das grandes festas, para aí
oferecerem seu sacrifício.
Os profetas criticam o culto sacrificial por esconder as injustiças, a maldade e a falta de
solidariedade do povo de Israel (Am 5.21-24; Os 6.6; Is 1.10-17; Jr 7.22). Os sacrifícios não podem
manipular Deus e não servem como garantia de felicidade e salvação. O Novo Testamento retoma
estas críticas proféticas (Mt 9.13; 12.7). Se o perdão dos pecados é concedido por Deus
gratuitamente aos que crêem, de fato, não há mais necessidade de sacrifícios nem de intermediários.
O escândalo da atuação de Jesus consiste justamente no fato de ele perdoar pecados sem impor
condições nem exigir o cumprimento das normas sacrificiais. Neste sentido, o Novo Testamento, de
fato, aboliu os sacrifícios bem como os demais rituais do culto judaico.
O termo sacrifício passa a ser utilizado pelo Novo Testamento e pela Igreja cristã em outro sentido.
Em primeiro lugar, os sacrifícios se transformam em ofertas espirituais ou éticas (1 Pe 2.5; Rm
12.1; Tg 1.27; Fp 2.17; 4.18; Hb 13.15s). Os verdadeiros sacrifícios são hinos de louvor, jejum,
esmolas, o martírio. Assim também os pais da Igreja entendem os sacrifício. Uma vida consagrada é
o único sacrifício autêntico (Justino).
Em segundo lugar, a morte de Jesus Cristo foi entendida como sacrifício de expiação (hilastérion)
por nossos pecados, através de seu sangue (Rm 3.25s.; cf. Mc 10.45). Aqui se faz alusão clara à
vítima sacrificada para expiar os pecados do povo no dia do perdão (Lv 16). Conforme Jo 1.29, o
Batista saúda Jesus com as palavras: “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.” Jo
19.31-36 narra a morte de Jesus Cristo, na tarde em que se imolavam os cordeiros da Páscoa, em
analogia ao sacrifício pascal.
Como a última ceia de Jesus estava relacionada com a Páscoa judaica, a compreensão da morte de
Jesus como sacrifício também está presente na Santa Ceia (1 Co 11.23ss). Na Igreja cristã, no
Teologia do Antigo Testamento: O culto israelita 9
entanto, este “sacrifício” é entendido como agradecimento (eucaristia) a Deus pelas dádivas
representadas nos elementos (Justino, Didaquê).
As comunidades cristãs nunca realizaram sacrifícios sangrentos. Para elas, a morte de Jesus
representou o sacrifício definitivo, não mais sendo necessário qualquer outro sacrifício de nossa
parte. O sacrifício como meio de salvação é abandonado. Só se conhece “o sacrifício dos lábios”, o
louvor (Hb 13.15), e a oferta das comunidades cristãs pelos pobres e necessitados, dentro ou fora
dos cultos regulares. Também existe muita crítica à concepção da morte de Jesus como sacrifício, já
que ela parece pressupor um Deus que precisa de um sacrifício de sangue para sentir-se reabilitado
em sua honra. Neste caso, deve-se dizer que o “sacrifício” era apenas uma metáfora conhecida no
judaísmo que se prestava para entender, dentro do contexto de origem dos textos bíblicos, a morte
de Jesus como uma morte que traz a salvação. Esta mensagem, no entanto, também se pode
entender sem o recurso ao sacrifício.